Canções de amor, por Zé Celso
Ele volta e meia está ao piano. Quem já passou pelo apartamento de Zé Celso ou por algum ensaio terá visto. Ele se aconchega, com evidente prazer, e toca uma composição sua feita para alguma peça ou então uma velha canção da juventude, de quando ouvia a rádio Nacional em Araraquara.
Foi o que fez no início da madrugada de ontem, para cerca de cem pessoas espalhadas, muitas delas deitadas, pela pista e pelas arquibancadas do Teatro Oficina. E foi um momento para guardar com carinho.
Não havia roteiro fechado, apenas uma série de letras de canções num caderno à sua frente. Tinha terminado pouco antes uma apresentação da nova “Cacilda”, ele estava cansado, mas se envolveu na interpretação de cada música. Interpretação que soava quase sempre muito diferente da original.
Por exemplo, em “Nem Eu” o diretor-cantor-instrumentista sublinhava o sentido de cada verso, distante da célebre versão melodramática de Ângela Maria, carregada de violinos, de 60 anos atrás. Trechos como “Não fazes favor nenhum em gostar de alguém/ Nem eu, nem eu, nem eu”.
Foram inúmeras canções de amor, aparentemente quase todas. Outro exemplo, “Dindi”, composta por Tom Jobim para Sylvia Telles nos anos 60: “Ai, Dindi/ Se soubesses o bem que eu te quero/ O mundo seria, Dindi, tudo, Dindi, lindo, Dindi”. Até “Três Apitos” Zé Celso cantou, para emoção geral.
Amor é também o caso do “Soneto do Olho-do-Cu”, criado por Zé e Marcelo Drummond a partir de poema creditado a Verlaine e Rimbaud, com música de Zé Miguel Wisnik. Era a grande cena de “As Boas”, que Zé e Drummond interpretaram no retorno do grupo aos palcos, duas décadas atrás.
Obviamente cansado, Zé Celso tentou parar algumas vezes, mas era instado a continuar pelo público, que sugeria canções como num show. No final, tentando atender aos pedidos, perdeu-se no improviso. Mas já estava claro que “Zé Celso em Concerto” merece uma temporada, não uma noite.
“Walmor y Cacilda 64“, em cartaz no teatro, é a mais musical das peças sobre a atriz, até aqui, e é curta para os padrões recentes do Oficina. Tem grandes cenas, como sempre. A primeira é de Drummond como Walmor Chagas, ator, marido e produtor de Cacilda, que por sua vez vive Getúlio Vargas.
É a carta-testamento na íntegra, pelo que pude checar. E o documento se revela arrepiantemente atual, como se tirado do noticiário do dia, até nas menções à Petrobras _o que é acentuado pela representação sempre direta de Drummond, “presentação” como diria Zé Celso, sem quarta parede.
Na apresentação que vi, algumas semanas atrás, o discurso arrebatado de Getúlio/Walmor/Drummond contrastou com o de Próspero/Zé Celso, que encerra a peça, mas que o diretor-ator leu de um caderno, aos trancos, arrastando a apresentação por meia hora além das duas programadas.
A marca de “Walmor y Cacilda 64” _cada peça da série é, no fundo, um episódio da história do teatro e do país_ é a politização crescente das artes naquele momento. Walmor Chagas, gaúcho e brizolista, discípulo de Ruggero Jacobbi, simboliza a ebulição, antes e depois do golpe civil-militar.
Outra grande cena é a reinvenção de uma visita de Cacilda e Maria Della Costa _esta, descobre-se, bem mais engajada_ ao Dops, onde estava presa Cleyde Yáconis, irmã de Cacilda. Vestindo peles luxuosas, as atrizes Sylvia Prado (Cacilda) e Juliane Elting (MDC) enfrentam a ditadura com teatro.