Em “O Duelo”, o redemoinho de Aury Porto, Pascoal da Conceição e Camila Pitanga
Veja também entrevista no TV Folha e breve perfil de Camila, além das fotos de Lenise.
Não compreendo bem por que a Companhia Mundana escolheu encenar uma novela de Tchecov, texto em prosa, e não uma das peças. É mais ou menos consensual que se trata do maior dramaturgo desde Shakespeare. E não é por falta de obras-primas tchecovianas com ambiência e temática semelhantes _e conflitos mais desenvolvidos.
Talvez a experiência no geral feliz com a adaptação de “O Idiota”, romance de Dostoievsky contemporâneo da novela, tenha estimulado o grupo a prosseguir na Rússia do século 19 e na prosa.
Mais provavelmente, encontrou-se no texto uma ponte _o próprio duelo, quem sabe_ entre o sertão nordestino, onde a montagem foi preparada por meses, e o interior russo, o Cáucaso. O sertão está presente, com certeza, embora a encenação seja tudo menos característica, folclórica.
A propensão do protagonista Aury Porto, não é de hoje que se observa, está mais para os personagens românticos, tanto no sentido psicológico como no político. Desta vez, sua interpretação é contida, para dentro, psicológica mesmo, em contraste com o antagonista vibrante de Pascoal da Conceição e com a mulher libertina e conflituosa de Camila Pitanga.
Embora Carol Badra, Vanderlei Bernardino e Fredy Allan deixem marcas fortes ao longo da apresentação, é nos personagens de Aury (Laevsky) e Pascoal (Von Koren) que “o duelo” se dá, com Camila (Nadyezhda, amante do primeiro) perdida no redemoinho de ambos.
São três interpretações muito diversas entre elas, como se os atores estivessem em dimensões apartadas, que caminham inexoravelmente para a catarse do duelo _e depois os instantes finais, de reconciliação e paz.
Infelizmente, a exemplo do que acontecia em “O Idiota”, a adaptação se estende além do necessário, não apenas nas três horas e meia de duração, mas sobretudo na insistência em cenas obviamente trabalhadas nos meses e meses de sertão, mas não essenciais _e que exigiriam uma crueldade de edição que a Mundana, uma companhia de atores, não tem.
Cenas inteiras, como a de um aniversário, se arrastam constrangedoramente. No caso, imediatamente antes do intervalo, é um estímulo aos vazios da plateia no segundo ato.
(Fui assistente de Zé Celso na montagem de “As Boas”, no mesmo CCSP, e presenciei sua crueldade: a uma hora da estreia, mandou derrubar todo o cenário por ser “decorativo”, não essencial. O público já entrava quando eu e o cenotécnico martelávamos as últimas adaptações dos objetos indispensáveis.)
Por outro lado, cenas como a da praia, em que Nadyezhda dança com a água em forma de balão, mereceriam registro em alguma antologia do palco. No caso, créditos não só para a atriz, mas para a diretora Georgette Fadel e para a direção de arte de Laura Vinci.
Outra cena antológica, mas esta pela interpretação de um magnífico Pascoal, é aquela que ele divide com Vanderlei e Fredy e chega assustadoramente perto da violência.
Apesar do esforço tanto racional como até físico de Pascoal, sente-se falta de maior explicitação das diferenças ideológicas, digamos, entre Laevsky e Von Koren. Diferenças que, mais expostas por Aury, envolveriam bem mais o raciocínio do espectador.
PS – “O Duelo”, tanto a novela como seu personagem central, Laevsky, ecoam um outro romance de Dostoievsky, “Os Demônios”. Em parte pelo duelo também lá presente, com o personagem central, Stavrogin, adotando a mesma atitude indiferente e suicida. Mas sobretudo por levar ao extremo _o risco da morte_ o engajamento em ideias.
Nelson, no programa da peça que, espero que vc tenha recebido, há um texto no qual exponho como essa novela de Tchékhov entrou em nossas vidas. E foi só muito indiretamente por causa de O Idiota.
O motivo primeiro da escolha foi exatamente o duelo, que é ideológico pelo lado do Von Koren mas que é totalmente sem sentido e sem motivo se olharmos através de Laiévski. A única fala de Laiévski sobre Von Koren em toda a novela está na peça e ela é de reconhecimento do valor e importância do seu adversário e de sua própria mesquinhez.
Von Koren diz a certa altura que “um duelo aristocrático não se diferencia em nada de uma briga de botequim”. Poderíamos nos referir também a uma “briga de trânsito”. E, é isso. Há irritação, depressão, ansiedade, impaciência, intolerância na convivência… Ninguém é grande nessa história. Todos são medianos, mas Tchékhov revela em vários pequenos momentos delicadezas difíceis de se ver na nossa vida de classe média.
Você vai me dizer, mas isso há em personagens de obras dramáticas dele e essa situações também. E eu te pergunto: porque vamos elocubrar sobre o que não escolhemos se há uma escolha feita?
Nós estudamos e fizemos um espetáculo com quatro atos de quatro peças de Tchékhov. E eu encenaria/encenarei “As três Irmãs” certamente. Mas, agora o nosso interesse recai sobre essa gente comezinha que vive desterrada, mas que não são grandes exilados da história como os nossos exilados da década de 60/70. Que, aliás, passado aquele tempo quente, se mostram, vez ou outra, também medianos nos seus pensamentos e atos com os nossos russos no Cáucaso.
Quanto aos personagens românticos, quero te lembrar que durante oito anos em que estive no Teatro Oficina (2000 a 2009) não fiz um romântico sequer. Em Os Bandidos de Schiller por exemplo, o romântico era o personagem de Marcelo Drummond.
Porém, devo dizer que amo os românticos porque eles são redutos de sinceridade nos nossos tempos cínicos.
Obrigado pela resposta esclarecedora, Aury. abs