Carne em cena

Lenise Pinheiro

Em 1994, no lançamento do plano Real, o quilo de filé mignon saia em torno de R$7,00. A mesma porção hoje custa R$ 80,00. Com a nova nota de R$ 200,00, dá para levar dois quilos e meio da carne. Artigo, considerado de luxo, foi alvo de notícia nesses últimos dias.:

– “Motorista tombou carreta com carne bovina, o caminhão frigorífico vinha do Rio Grande do Sul e teve sua carga saqueada em seguida, na Rodovia Régis Bittencourt, na altura de Itapecerica da Serra. As reportagens deram ampla cobertura ao fato, enfocando com perversidade na maioria das transmissões, o fato de moradores da região arrastarem cortes inteiros, sem nenhuma condição de higiene, peças para serem repartidas entre seus pares. A polícia logo foi acionada e em meio ao “miserê” instaurado, agiu sob severo comando, arremessou granadas de bombas de gás lacrimogênio contra a turma, dissipava entre a fumaça tóxica, a alegria e a desmoralização da galera. Que para abocanhar um naco de carne, arrisca a vida. Atravessa rodovias, se esgueira por entre veículos e os inevitáveis julgamentos morais, segundo o locutor:

– “O jovem arrastando a caça, como um canibal”.

Lamentável constatar o acúmulo de violência registrado nas ações da Polícia Militar. Cada vez mais a propriedade privada é preservada na base da agressão física. Imagens indigestas mostram bombas de efeito moral lançadas sobre os alimentos. Deixando propositalmente, sem condições de consumo, a refeição de tantos.

Desumanidade em alto grau é o que se tem visto, corporações mundo afora.

Câmeras dão conta de tanta truculência onde a fotografia e os vídeos assumem protagonismo na representação dos tempos de quarentena. Em todos os setores, registros assumem contornos poéticos, documentais e dramáticos. Levam à luz os rostos e os números da desigualdade, que se agiganta agora, na pandemia.

Nesse ensaio de Quartett, em 1996, a arte de Edilson Botelho, Gerald Thomas e Ney Latorraca, focam as mazelas da condição humana. As metáforas nos discursos dos atores, são explicitadas pela direção de arte. No cenário, prateleiras de nervos em carne viva, expõem fragilidades e violências as quais estamos expostos. Como nos tempos de agora.