‘Terror e Miséria no Terceiro Milênio – Improvisando utopias’

Lenise Pinheiro

Os trabalhos do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos roubam a cena. Grupo de teatro que numa queda de braços com a especulação imobiliária foi destituído de sua sede em SP, se vê abrigado no panteão das companhias teatrais brasileiras. Operando no modo polifônico, apresenta nessa mais recente montagem “Terror e Miséria no Terceiro Milênio”, comprometimento com a verdade e com tudo que for visceral. Projeções nos figurinos e pelas cordas do palco criam cenários para falar de empatia, (des)proteção e (cons)ciência. Dramaturgia com foco nos abusos, denunciados em falas, imagens chocantes e acordes musicais. Fomentam as diversidades e cultivam os canteiros das flores tristes desses tempos de agora. Artistas com garras demais e juízo de menos. Felizes por serem da mesma companhia. Improvisando utopias, estrearam há um ano atrás. Discursos para os que estão e para os que virão. Ode à liberdade de expressão, vide a cena com as câmeras dos celulares ligadas, aqui retratada.

Oposição explícita à essa “gente verdeamarelada pela ira e pelo ódio”.

Atores vestidos com as roupas e as armas de Jorge. Agora aqui ou em Vigário Geral.

No texto original de Bertolt Brecht começa com a cena “A grande parada militar”:

– “No tempo do governo daquele que se diz enviado de Deus”.

A diretora Claudia Schapira, destaca diálogo inicial:

-“Parecia uma frase saída do discurso do então candidato à presidência da república e impossível de ser levada a serio…. Hoje quase dois anos depois, estamos aqui reverberando o caos social e político, agravado pela pandemia do novo corona vírus, no país à deriva. Foi a similitude entre o contexto que estávamos vivendo e a ascensão do nazismo sendo destrinchada pelo Brecht no texto original, que inspirou a escrita desta cena, com tons de parodia , onde os djs- narradores preparam a entrada dos atores que vão narram enquanto satirizam, a tal parada militar”.

VOZ COLETIVA:

No tempo do governo daquele

Que se diz enviado de Deus,

Declarou-se velada guerra a quem quer que fosse que pense diferente.

No tempo do governo daquele

Que se diz enviado de Deus – Assim disse Brecht!

Declarou-se velada guerra a quem quer que fosse que pense diferente.

Fala-se em méritos

E se cultuam aqueles que ultrajaram vidas corpos

Exaltam-se iniquidades e ferozmente se combate a diversidade,

No tempo do governo daqueles

Que se dizem enviados de Deus!

No tempo do governo daqueles

Que se dizem enviados de Deus!

Som de uma rádio sintonizando. O estilo musical muda.

Assim os céus se escurecem

Assim o chão treme e craquela sob nossos pés

O povo dividido alguns com ele outros contra

Alguns resignados nestes tempos que nos tocou viver

Olhamo-nos uns aos outros aos berros e barrancos,

Fendidos, atentando ao que fazer

Lá vem uma multidão atônita, pálida

À frente em nome dela e por ela: a bandeira

Alguns caminham e se degladiam

E se dizem seus fiéis

Lá vem eles, com mulheres e filhos

Lá vem verde-amarelados pela ira…

Mas se debatem, se contradizem, se desconhecem

Se debatem, se contradizem, se desconhecem

Se debatem, se contradizem, se desconhecem

Som de uma rádio sintonizando. O estilo musical muda.

O que se ouve são falácias toscas

Enquanto a caneta míssil implode o presente e soergue desérticos futuros

Muitos vociferam mas não se ouvem os lamentos, nem as pragas

Pois tudo é encoberto ao som da grande parada paramilitar

Anacrônica, estéril e patética.

Impotente, mas que atravanca que atordoa que atrapalha

E se alguém pergunta,

Ninguém responde, ninguém escuta: é barulhenta a banda, a militar e a miliciana

Os demais atônitos atentos

Muitos esperamos o momento de avançar

Será?

Som de uma rádio sintonizando. O estilo musical muda. Atores em câmera lenta.

Assim estamos nestes tempos aflitos

Assim estamos nestes tempos esquisitos

Em que um mundo está morrendo deveras morrendo e alguns desse mundo preferem ao morrer, carregar tudo com eles…

 Entra uma marchinha de carnaval. Todos os atores sambam, constrangidos. Aos poucos vão saindo. Fica a imagem!

#se puder # ficaemcasa