Miguel, João Pedro, George e Martin

Lenise Pinheiro

Dias de perdas e exposições em grau máximo de desigualdade, nos unem frente às atrocidades do Executivo. Temos que nos unir e nos organizar como sugerem as ‘lives’ de Emecida e Chico César.

O espetáculo (In)Justiça, escrito por Evill Rebouças e apresentado pela Cia. de Teatro Heliópolis, segue ecoando nas evidências e nos fatos de agora. Pedi para o autor alguns fragmentos do texto.

A seguir, relatos da força da criação, que nos faz pensar.

“O primeiro trecho eu criei ao pesquisar e me deparar com o tanto de corpos pretos que foram mortos pela polícia, mas não quis referenciar essa instituição diretamente para deixar o discurso mais amplo. Parti então da ideia de nascer – o nascimento de balas, em detrimento aos corpos pretos mortos pela ausência do Estado.

A munição tem quatro partes essenciais: o invólucro, a espoleta, o propelente e o projétil, esse último geralmente feito de chumbo, em forma de ogiva – ogiva é aquela ponta mais fina da bala.  O invólucro é o útero da bala. Todos os componentes estão ali reunidos em uma única peça. O corpo do invólucro pode ser cilíndrico, cônico, em forma de garrafa – que só assim consegue armazenar uma maior quantidade de pólvora. Geram-se então bebês, balas, algumas bem, bem robustas. Se houver parto, talvez tenha que ser cesariana, dado o corpanzil do projétil. Cuspido por parto normal é difícil, pois é comumente cuspido por fuzil. Normal alguns se perderem. No entanto, há vários tipos de projéteis: tem aquele de ponta oca e riscos na parte de fora. Quando ele encontra um objeto, um órgão, o projétil se abre como se fosse uma flor, fazendo uma verdadeira cratera dentro do alvo. O estrago é tão grande que esse tipo de projétil é proibido em guerras. Mas aqui no Brasil tem. Tem também o projétil revestido de cobre, náilon, teflon… Tem ainda o projétil chamado de traçante. Esse tem uma pequena quantidade de fósforo ou magnésio na base ou na ponta, e que se queima no atrito com o ar.

O segundo trecho eu escrevi ao imaginar presos amassados em uma cela. Não cabem nas celas e não cabem na sociedade após cumprirem suas penas. Os números citados podem ser dos artigos, dos incisos, ou dos mortos mesmos.

O Estado… O Estado… Não importa o estado, em que estado vou ficar. Leis, artigos, parágrafos, incisos. O sistema quer nos exterminar. 151. A gente tem que se organizar. Leis simples, sem parágrafo, sem inciso, sem papel, firmado na saliva, na palavra. O Estado… Só batendo de frente. 152. Falta metro quadrado, falta cama, falta privada, sobra corpo, sobra mijo, sobra merda na metragem quase inexistente, falta metro quadrado, sobra gente. 533. Falta recurso, falta julgamento. 1533. Leis, artigos, parágrafos, incisos, primeira e segunda instâncias. Não há instância pra nós. Nem aqui, nem lá. Não cabemos nem dentro e nem fora.

O terceiro trecho saiu depois que fomos visitar um terreno baldio que existe entre Heliópolis e a Sabesp. Nesse lugar é quase impossível contar a quantidade de crianças que soltam pipas, ladeadas por galinhas, porcos, cabritos, ovelhas e restos de comidas que alimentam os porcos – animais esses que são carnes  vendidas e consumidas na feira de Heliópolis.

Existe coisa mais injusta do que viver? Ser vivo é muito frágil. Parece papel de seda se equilibrando no vai – sem vem – do ar.  Viver não tem fórmula secreta – viver é uma coisa muito particular, e pra mim viver é sentir o vento na ponta dos dedos. Melhor ser pipa do que capuxeta. Capuxeta não tem vez no céu. Toda hora é cortada. E se não levar taio, se desgoverna, se enrosca na fiação do poste, nos galhos da árvore. Se num suspiro de brisa ela conseguir se levantar, vai restar um tantinho de sobrevida, de flutuar, de vagar pelo viver. Triste quando enverga, quando a alma fica pensa”.

Encenação: Miguel Rocha
Texto: Evill Rebouças (criação em processo colaborativo com a Cia)
Atores: Alex Mendes, Cícero Junior, Dalma Régia, Danyel Freitas, David Guimarães, Maggie Abreu e Walmir Bess.

Ator menino Gustavo Rocha.