Leve como chumbo
Em meados dos anos 90, tomada pelo pavor que a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida impingia, levava os dias trabalhando e acompanhando meu melhor amigo, que entre diagnósticos e consultas, em poucos dias perderia a vida para a AIDS. Naquela época, partiam amores, amigos e desconhecidos para o que seria uma catástrofe em forma de vírus. Sem distanciamento social ou quarentena, circulávamos livremente pois a transmissão se dava em contato sexual ou transfusão de sangue. Foi um perrengue danado.
Nesse período, passei a fotografar uma montagem ainda em fase embrionária e os ensaios aconteciam no antigo Teatro Gazeta. A produção, encabeçada por conhecida atriz televisiva, alertava com insistência, para que eu não me reportasse a ela.
E assim foi, mas, quis o destino nos fazer encontrar no saguão do edifício, era para ser mais um dia de ensaio.
Eu, carregada de equipamentos e ela cheia de autoridade, disparou:
– “Quem é você”?
O diálogo insólito, terminou com um sonoro:
– “Está despedida”!
Me recordo da porta do elevador se fechando. Ecos da voz estridente, renitente em meus ouvidos, me deixaram a tarde livre, então pude correr para o hospital mais cedo do que havia programado, e fazer companhia ao meu amigo infectado. Ele, deixaria a vida naquele dia, foi nosso derradeiro encontro.
Com a atriz em questão, encontrei muitas outras vezes, espantei o ressentimento, para tratar de assuntos profissionais.
Até ela ser nomeada Secretária da Cultura do Executivo. Ela, nesses últimos dois meses, desapareceu.
Campanhas de mobilização em prol da Cultura clamavam por ela, e nada.
Ontem, deselegante como ela só, entoou hino à repressão, desautorizou a reportagem e testou positivo ao vírus da truculência.
Com desequilíbrio latente sugere:
– “Vamos ser leves”.
Metonímia da semântica do mal.
Nosso país lidera as pesquisas em números e desmandos.
A política entrevistada, esbraveja e se repete ao indagar a repórter:
– “Quem é você”?
Em desastrosa atuação, diz que tem muita “coisa bacana para dizer”.
Duvido.