Cia. de Teatro Heliópolis invoca Xangô contra a injustiça brasileira
[IN]JUSTIÇA
★★★★
Sesc Belenzinho – r. Pe. Adelino, 1.000. Sex. e sáb., às 20h; dom., às 17h. Apresentação especial nesta quarta (20), às 20h. Até 8/12. R$ 30
Nelson de Sá
Nos tempos que correm, de intolerância também religiosa, o ritual de Xangô no início de “[In]Justiça” talvez seja o que mais incomode o ódio vigente, mais até do que a própria injustiça racial retratada no palco do Sesc Belenzinho.
Xangô é o orixá da Justiça. Sente-se sua presença, do início ao fim da apresentação, quase como um eco do Zumbi de Jorge Ben Jor —outra atração da programação de cultura neste Dia da Consciência Negra em São Paulo.
Mas aquele Zumbi é o senhor da guerra. E o espetáculo da Companhia de Teatro Heliópolis faz o possível para não ceder à violência, à vingança. Talvez por isso a canção emblemática não esteja na peça.
“[In]Justiça” expõe a realidade coreografada do dia-a-dia das ruas, com subempregos, insegurança pública, violência policial, até chegar por fim ao Poder Judiciário, no tribunal do júri.
Durante todo o caminho, o racismo é a marca comum, porém não se busca retaliação, desforra e sim a Justiça que Xangô aponta.
Como escreve Bruno Paes Manso no programa, para além do violento machado de duas faces, o orixá é associado a uma estrela de seis pontas, simbolizando “a sabedoria na busca pelo equilíbrio do Universo”.
O jornalista especializado em segurança pública participou do processo de montagem, ao lado de muitos outros chamados pela companhia, o que ajuda a compreender toda a complexidade de olhares resultante.
Em especial, o espetáculo dirigido por Miguel Rocha quebra conscientemente o teatro do tribunal do júri com Xangô e também com um bocado de Brecht.
Coração da peça, é a cena mais longa e desenvolvida, em diálogo e conflito. Aquela em que os papéis da promotora, do advogado de defesa e do juiz não são idealizados, pelo contrário, carregam em ironia e auto-ironia.
É quando “[In]Justiça” se mostra mais forte no intento de, em vez de simplificar, ampliar o esclarecimento, o raciocínio. É o ponto em que a realidade não se apresenta dicotômica, mas multifacetada.
Co-fundadora da companhia, a atriz Dalma Régia, que faz a promotora, é quem reflete melhor essa consciência épica, carregada de humor, seguida de perto pelos outros dois atores, David Guimarães e Walmir Bess.
Cerol, que poderia ser descrito como personagem central, não chega a tomar a forma de um único ator, a ponto de ser representado por uma cadeira vazia no tribunal, mas sua trajetória é tocante, dando a camada mais dramática.
A figura da criança, em especial, enternece, emociona —e mostra o que talvez seja o mais angustiante de “[In]Justiça”, que é a projeção de persistência da injustiça.