Veja texto e fotos de ‘Diários do Abismo’

Lenise Pinheiro

Aos nove anos de idade, acompanhei meus pais à uma visita ao Sanatório do Juquery em Franco da Rocha. Falta de organização por parte da instituição, permitir minha entrada. Venho de uma família onde ninguém foi muito poupado das agruras da vida. Para eles deveria ser normal enfrentar todas as adversidades. Sem saber, eles me preparavam para percorrer os pavilhões da loucura, os cheiros fédidos e tudo mais que poderia ser chamado de hospício.

Anos mais tarde em 1998, fotografei o espetáculo “O Crepúsculo de Van Gogh”, dramaturgia da Ivana Moura, com o ator Servílio de Holanda, no Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano, mais conhecido como Hospital da Tamarineira, no Recife.

Das duas experiências, ficaram retidos em meus tímpanos gritos de horror e nas minhas retinas, excreções de toda natureza.

“Os loucos parecem ser eternos”, no dizer Maura Lopes Cançado. Escritora reverenciada pela atriz Maria Padilha no espetáculo “Diários do Abismo”, que encerra temporada nesse final de semana, no Sesc 24 de Maio em São Paulo.

Montagem cheia de encantamento, cuidadosamente dirigida por Sérgio Modena. Nesse trabalho, todos os sentidos são aguçados:

– “Hospício é este branco sem fim”.

Nutro pela atriz, amor incondicional. Sempre foi dessa maneira. Desde “Lulu” na Casa de Cultura Laura Alvim, acompanho a amiga cheia de predicados, em sua história de sucessos e comprometimentos.

Nesse trabalho que, por certo voltará ao cartaz, vê-se desdobramentos da vida da escritora mineira, que entre crises e internações deposita mensagens de afeto e fúria, na conta da instabilidade emocional. Saímos do teatro, convictos que nessa montagem, a atriz joga com a plateia, desmesuradamente aberta, como uma janela para o sol.

As relações do cotidiano da autora, se transformam em mantras, cravados em nós.

Narrativa infestada da lucidez de quem dispensa mentores. Ritmada pelo timbre de voz trabalhado, corpo cheio de agilidade em cena e fora dela. Maria Padilha também estreia no papel de mãe.

O universo feminino, escancarado no dizer da poeta:

– “A humanidade toda é responsável pela doença mental de cada individuo! Só a humanidade toda evitaria a loucura de cada um! É necessário amor! É necessário, é necessário!

Montagem carregada de signos, que traduz autenticidade e gigantismo, seja pela escolha dos figurinos, pela fluidez dos vídeos e pelo cenário do André Cortez.

Em forma de diário, um quebra cabeça imaginário se monta diante dos nossos olhos, pela eloquência da atriz, que transborda provocação. Misteriosamente o histórico de exasperações dá passagem a essa encenação ora carregada de doçura, ora comprometida com a brutalidade. Os artifícios teatrais, somados às falas da atriz nos levam a acreditar que somos a mais bela invenção da natureza.

Somos compelidos a brincar, a esmagar flores e a gritar:

– “Bravo”!

Dos aplausos ao final da apresentação, a atriz surge dadivosa, e ainda encontra força e meiguice para sortear entre os presentes, livros da autora que inspirou a montagem.

O texto é assinado por Pedro Brício, nesse trabalho que parece um filme, daqueles que não devemos esquecer.

Ficha Técnica

Obra Original: Maura Lopes Cançado

Dramaturgia: Pedro Brício

Direção: Sergio Módena

Atriz: Maria Padilha

Cenário: André Cortez

Iluminação: Paulo César Medeiros

Figurinos: Marcelo Pies

Projeções: Batman Zavareze

Trilha Sonora e Composição Original: Marcelo H

Direção de Produção: Wagner Pacheco

Realização: Cena Dois Produções Artísticas

SESC 24 de Maio – SP
Rua Vinte e quatro de maio, 109
Sexta e Sábado 21h Domingo 18h (Últimas apresentações da temporada)