‘Roda Viva’ vai da TV para o smartphone, mas o Brasil repete a história
Roda Viva
Teatro Oficina – rua Jaceguai, 520, Bela Vista, tel. (11) 3104-0678. Sex. e sáb., às 20h; dom., às 19h. Até 10/2. Sessão especial na véspera de Ano Novo (segunda, 31/12), às 20h. R$ 60 (inteira)
O musical de Chico Buarque continua tendo muito a desvendar da indústria cultural contemporânea, no sentido de construção midiática do ídolo, de como o mito se embebeda na adoração mediada.
O vínculo original era com a televisão, o popstar era criado e idolatrado nos programas da Record, nos festivais que aconteciam no teatro Paramount, hoje Renault, a duas ou três quadras do Oficina.
Era resultado da linha de montagem da indústria fonográfica e da propaganda emergente no país, por exemplo, com a formatação da Jovem Guarda, inclusive o nome, pelo publicitário Carlito Maia.
Agora o ídolo como alegoria, na peça como fora dela, não é bem o cantor popular, não é nem mesmo artista. Está mais para um político cercado pelas mesmas irracionalidade, manipulação, veneração.
A nova montagem consegue antes de mais nada fazer essa passagem do que era até cenograficamente o universo do televisor para o que é hoje o smartphone, com internet ou, melhor, mídia social.
Além da trama, outro aspecto que traz o musical criado em 1967/8 por Chico e Zé Celso para o presente está nas próprias canções, nas suas letras, a começar da composição-título, “Roda Viva”.
Como então, também agora chega a roda-viva e “carrega o destino pra lá”. Mas o diretor não é de se entregar e sua remontagem coloca a roda-viva na mão de todos, não só dos militares, de novo.
A atualidade da crítica e resistência ao sufocamento também está nas canções, daí “Roda Viva” funcionar tão bem, assim como o dueto de “Sem Fantasia”, cantadas ambas em coro com o público.
Na música, o espetáculo ganha ainda com o acréscimo de “As Caravanas”, como que para confirmar que o país, passado meio século, não mudou e não quer mudar no que importa, seu apartheid.
“Roda Viva” está na origem do Oficina como o conhecemos nas últimas duas para três décadas, de retomada. O público atual acompanha e consegue apreciar com encantamento o que está em cena.
Mas, é claro, tudo se inclina mais para Dionísio que para Apolo, ainda que outra canção usada –quase um hino do Oficina, de Zé Miguel Wisnik– lembre tratar-se de um “templo de Apolo erguido a Dionísio”.
O andamento do musical é por vezes caótico, nada apolíneo, e isso se reflete pontualmente numa voz que mostra alcance mas não se sustenta ou num movimento que não chega a se firmar como gesto.
O protagonista de “Roda Viva“, como Zé Celso enfatiza a cada entrevista, é o coro, que conta com vários destaques, sem formar porém um corpo único como aquele, considerado histórico, de 1968.
O coro de 2018 espelha melhor, quem sabe, o Brasil agora, ainda pasmo e dividido, como de resto todo o mundo, diante da ascensão dos discursos de ódio, da exaltação da força e até da tortura.
A sombra opressora que cresce hoje, parodiada no personagem central e nas caricaturas musicais que vão surgindo, com grande efeito, não têm ainda um contraponto claro, antagonista, no teatro ou fora dele.
No fundo, a resposta parece ser o próprio Oficina. A apresentação vista, no dia 23, foi em memória do irmão de Zé Celso, o também diretor Luís Antônio Martinez Corrêa, e foi especialmente tocante.
Celebrou o teatro, os artistas, as revoluções sociais e políticas que o Oficina encarna desde os anos 1960 e são o alvo preferencial, também alegórico, nestes tempos que se anunciam.