O passado não morre, avisa Voltaire de Souza, sobre Bolsonaro (e Lula)
Não é a primeira vez que Voltaire de Souza, o cronista que estreou há mais de duas décadas no Notícias Populares, vai parar no palco.
Na primeira, em 2007, eram personagens seus do cotidiano da cidade, como Elpídio, mas não eram seus textos, suas palavras. O espetáculo, que partia de improvisações, não trazia o aspecto mais singular de sua produção diária —que, extinto o NP, prossegue hoje no também popular Agora.
Pode-se dizer que desta vez, de fato, é a sua estreia como autor no palco. E funciona. A escrita de Voltaire de Souza se integra plenamente ao teatro, pelo que se viu na leitura dramática de “Pior Não Fica!”, dois domingos atrás, no teatro Satyros 1.
O grupo, chamado Os ZZZlots, tem feito apresentações esporádicas, testando as pequenas crônicas com o público, como esquetes. Elas retratariam aquilo que acontece ou é falado na cidade, em bairros populares, sobre o país, a política, esporte, comportamento.
Os textos abrem com anúncios retumbantes, três expressões genéricas que parecem tiradas das manchetes (Um exemplo recente, sobre as eleições: Tensão. Nervosismo. Ansiedade.); e se segue um diálogo curto e irônico, terminando numa tirada à maneira de Nelson Rodrigues, uma moral torta da história.
O resultado, como nas peças de Rodrigues ou de Oswald de Andrade, por sua vez devedoras de comediógrafos populares como Joracy Camargo, é um humor eficiente, de “one-liners”, frases cortantes. Não são piadas, mas ironias, com realismo e uma certa resignação.
Quando surgiu no NP, Voltaire de Souza se inspirou nas crônicas de Rodrigues, publicadas por uma década na coluna A Vida como Ela É, ao longo dos anos 50 e início dos 60, no Última Hora —o jornal, curiosamente, que o NP foi lançado para combater. Inspirou-se também nos microcontos de Dalton Trevisan, que é possível conhecer no livro “Ah, É?”.
Voltaire é mais extenso e menos sério do que o paranaense Trevisan; e é mais telegráfico e menos descritivo do que o pernambucano-carioca Rodrigues no UH. O espírito de ambos está nos textos até hoje, não só na forma dos pequenos diálogos, mas sobretudo nos temas e no ambiente que retrata.
Mas se algo se firmou, decantou ao longo dessas décadas, como as apresentações confirmam, é que há mais de Rodrigues do que Trevisan no humor teatral de Voltaire. Talvez o que falte nele, a partir daí, seja escrever uma peça por inteiro para, como o dramaturgo-jornalista, enfrentar a tragicomédia brasileira.
Na apresentação vista, com uma encenação que remete a radioteatro, inclusive sonoplastia e locução, não faltou Jair Bolsonaro, na esquete “O Passado Não Morre”:
Impasse. Incerteza. Confusão.
É a política brasileira.
Bruno estava na dúvida.
— Sou gay. Será que posso votar em Bolsonaro?
O candidato é polêmico.
— Tudo bem que ele não gosta da gente…
Bruno queria chorar.
— Mas eu gosto dele, pô.
Os amigos desprezavam.
— Otário.
Bruno se sentia sozinho.
— Será que eu sou o único?
A raiva chegou no quarto chope.
— Discriminado por ser gay. E por votar no Bolsonaro.
Melhor ir para casa. O sono chegou rapidinho.
Veio a visão. Um homem apareceu no quarto.
Alinhado. Simpático. Olhos azuis.
— Papai?
O falecido sr. Cotrim nunca tinha aceitado a sexualidade de Bruno.
— Vota no Bolsonaro. Que eu te perdoo tudo, meu filho.
Bruno já se sente até um pouco mais macho.
Os fantasmas do passado, por vezes, dão o seu recado.
Também não faltou Elpídio, esperançoso com Lula, em “Ele Vai Voltar”:
Desânimo. Revolta. Perplexidade.
É o sentimento da esquerda.
Lula na prisão.
No seu pequeno apartamento em Santa Cecília, Elpídio acompanhava os fatos.
— Isso não tem muita importância.
Ele não perdia a esperança.
— O povo unido jamais será vencido.
O conhaque reforçava suas convicções.
— Querem prender? É?
Ele deu um risinho.
Certeza total.
— Ele volta.
A tarde caía docemente sobre a metrópole paulista.
Do alto da sacada, Elpídio deu seu brado de fé.
— Ele vai voltar!
Uma nuvem rosa se esfiapava no horizonte.
— Ele voltará!
Os raios de sol filtravam-se numa paisagem bíblica.
— Ele voltará!
Do andar térreo, responderam a Elpídio.
— Aleluia, irmão.
Era o culto do Pastor Juvêncio Maganoni.
— Jesus já vem.
A verdade é como uma grande hóstia.
Engole quem quer.
Para quem ainda não sabe e quer descobrir quem é, afinal, Voltaire de Souza, leia no Agora.