Abundante, ‘Ítaca’ abre a cortina para as guerras contemporâneas
Ítaca – Nossa Odisseia
★★★★★
Sesc Consolação – Ginásio Verde (2º andar), r. Dr. Vila Nova, 245, São Paulo. Qui. a sáb., às 20h30; dom., às 18h30. Até 5/8. R$ 15 a R$ 50. 16 anos
Como reafirma “Ítaca – Nossa Odisseia”, o teatro de Christiane Jatahy vai muito além da ligação com cinema, que é o que se costuma enfatizar. Os experimentos em dramaturgia são até maiores do que a opção formal por usar vídeo.
E na verdade, para começar por aí, o próprio recurso à imagem reproduzida é dinâmico, integrado, jamais externo à cena. Isso tanto na captação pelas câmeras, agora na mão dos atores, quanto em sua projeção na tela/cortina que domina magnificamente o cenário.
Também a dramaturgia se construiu conjuntamente, não enxertada à encenação. O texto foi editado pela diretora a partir de improvisações dos atores e depoimentos de refugiados, além do poema épico de Homero.
Duas passagens do clássico são destacadas para compor os dois “lados” da peça: Penélope com os pretendentes, em Ítaca, e Ulisses “a caminho de Ítaca”, preso a Calipso.
Em ambos os lados, daí o complemento “Nossa Odisseia”, o espetáculo se volta à oposição de homens e mulheres hoje. E em ambos o olhar é sobretudo aquele da mulher, como Penélope esperando Ulisses ou Calipso tentando não perdê-lo.
É “Nossa Odisseia” também porque é do Brasil que se trata, como explicitado nas falas do lado de Penélope. Um dos pretendentes fala grosseiramente da personagem, que remete nesse início à ex-presidente Dilma Rousseff:
“Ela chora enquanto o país afunda. Fica tecendo histórias sobre nós, mas na verdade gosta que a gente viole esta casa… Podemos votar a tua destituição… Vai melhorar! Depois das eleições!”. O público ri, até a ameaça de violação se cumprir.
No outro lado, de Ulisses com Calipso, o que se tem não é esse homem abusador, mas o homem recusando a mulher, querendo abandoná-la.
Em tempo: no espaço bi-frontal, metade do público vê uma das cenas, metade outra, até trocarem de lado e tudo recomeçar —no final, sobem as cortinas e os dois lados se integram.
Na apresentação, sons de um lado vazam para o outro, com falas que ecoam mais, como esta de Calipso, ao que parece expressa duas vezes: “A guerra não é declarada, ela é permanente”.
Como se percebe logo, Jatahy empreende um acúmulo de camadas de significado e forma. A riqueza barroca de elementos que vai introduzindo lembra a escrita de Shakespeare ou as encenações de Zé Celso e Antonio Araújo.
A proximidade que alcança quando trata de homens e mulheres ou do Brasil não se reproduz, no entanto, quando a questão se volta mais diretamente aos refugiados. É sobretudo quando os lados se juntam, ligados por água —como o mar Mediterrâneo que os imigrantes africanos e árabes tentam atravessar e no qual tantos morrem.
Os conflitos se multiplicam, ouvem-se até palavras em árabe, mas a experiência e a compreensão do público brasileiro sobre a tragédia dos refugiados é diferente daquela dos europeus —franceses e portugueses— que viram o espetáculo anteriormente.
De todo modo, os depoimentos lidos ou representados, dos imigrantes entrevistados para a peça, são pungentes por si, por mais que sua tragédia possa ser percebida aqui como distante.
Vistas na estreia, com mudanças de elenco e cenário reconstruído, as três partes desta “Ítaca – Nossa Odisseia” por vezes se alongaram, perderam ritmo, mas o resultado foi abundante, a ser assimilado e maturado aos poucos na produção local.
Um elemento que volta à mente sem parar são as cortinas, que servem de “muro” a separar alegoricamente os muitos lados em conflito na cena. Quando elas se levantam, a guerra é aberta e desesperada. A execução técnica parece ser complexa, mas a imagem não poderia ser mais singela e afiada.