Em ‘A Ira de Narciso’, Gawronski conduz o espectador de novo à transgressão
Nelson de Sá
A Ira de Narciso
Oficina Cultural Oswald de Andrade, r. Três Rios, 363, Bom Retiro, tel. (11) 3222-2662. Seg. e ter, às 20h, até 26/6.
Gilberto Gawronski é um artista único, à parte, na cena teatral de Rio e São Paulo. Estreou encenando um musical ainda muito jovem, ao assumir “Theatro Musical Brasileiro II” depois da morte do diretor Luís Antônio Martinez Corrêa, e há dois anos dirigiu o popular “Estúpido Cupido”, que só agora saiu de cartaz no Rio.
Mas ele é sobretudo o mentor e ator de espetáculos de transgressão, em conteúdo e forma, desde “Na Solidão dos Campos de Algodão”, do francês Bernard-Marie Koltès, e “A Dama da Noite”, adaptado de Caio Fernando Abreu, ambos mais de duas décadas atrás, até o recente “Ato de Comunhão”, do argentino Lautaro Vilo.
O espetáculo “A Ira de Narciso” apresenta agora um novo aprofundamento seu na interpretação, com outras facetas sendo mostradas, além da confirmação de sua opção pelo risco, com o texto do uruguaio Sergio Blanco, que ele e o produtor –aqui também idealizador e tradutor– Celso Curi trouxeram para o Brasil.
É uma peça que, como aquelas do brasileiro Leonardo Moreira e de incontáveis outros, mistura a realidade do próprio Blanco, de sua personalidade e do próprio nome, com a ficção de um personagem que, solitário num hotel em Liubliana, na Eslovênia, se afunda num aplicativo para encontros sexuais.
Em se tratando de Gawronski, “Narciso” é também um thriller obscuro e fascinante, quase um policial de Netflix, com o suspense se mesclando ao debate propriamente existencial, mais ou menos vinculado à palestra que o personagem deve fazer na cidade –episódio que teria realmente se passado com o autor.
A costura de diferentes realidades e ficções, inclusive com referências nominais de Gawronski/Blanco ao Gawronski ator, é propositadamente confusa, mas o resultado é pop, no sentido de envolvente, popular mesmo. Esse é o desejo do próprio dramaturgo, aliás, como indica um texto seu no programa de “Narciso”:
“Não creio que narrar a mim mesmo consista em um ato egocêntrico de amor-próprio, como normalmente se diz, mas, ao contrário, acho que consiste em tentar fazer-se querer. No final, é algo muito simples: Não escrevo sobre mim mesmo porque me amo, mas porque quero que me amem.”
Em “Comunhão”, há dois anos, Gawronski fazia o espectador entrar nos anseios e nas sensações de um canibal, a ponto de quase sentir o cheiro vertiginoso da carne. Agora, essa identificação, essa empatia fácil do ator com o público é novamente usada como numa armadilha, em que se cai, traiçoeira e inevitavelmente.
Para tanto, a encenação de Yara de Novaes recorre até ao primeiro Roberto Carlos, compositor que combina estranhamente com o viés algo romântico dos precipícios de Gawronski.