Cia. Hiato carrega o público em suas viagens com ‘Odisseia’
Odisseia
★★★★
Sesc Avenida Paulista, av. Paulista, 119. Qui. a sáb.: 19h. Dom.: 17h. Até 8/7. Ingr.: R$ 9 a R$ 30. 18 anos.
Talvez seja opção da encenação, um pouco como o próprio poema em que se baseia, mas esta “Odisseia” é um apanhado de histórias, de peças diferentes. Não é uma única narrativa, assim como não é uma trajetória única aquela da Cia. Hiato, que está comemorando 10 anos.
Leonardo Moreira, autor e diretor do grupo, parece ter decidido dar voz a cada um dos membros e buscar no palco a integração de suas histórias. É um risco, com resultado ainda em desenvolvimento.
“Odisseia” foi apresentada primeiro em Atenas e chega a São Paulo com quase uma hora a mais. (A bem da verdade, nasceu em 2017 na Holanda, com apenas um de seus monólogos, de Luciana Paes como Calipso, e depois passou por um “estudo” em setembro na Casa Palco, em São Paulo.)
Cada ator da Hiato conta um pouco da sua história, mesclando-se aos personagens de Homero. Quem nunca aparece no palco é Ulisses, representado, como se descobre aos poucos, pelo próprio público.
Na festa que é “Odisseia”, o espectador é aquele que retorna, que reencontra a companhia —depois de dez anos de guerra de Troia e outros dez no caminho de volta.
Em uma década de Hiato, desde a estreia com “Cachorro Morto” (2008), na qual os personagens já traziam os nomes dos atores, a marca é essa costura entre a realidade e a ficção.
Desta vez, isso é pronunciado já na primeira cena, com a entrada de Aura Cunha. Ela conta a história do pai, que saiu de casa como Ulisses, e o que viveu desde criança, a exemplo do filho de Ulisses, Telêmaco, que abre a “Odisseia”.
Produtora da companhia, não atriz, Aura faz desde logo a cena mais tocante —e o faz repetidamente, como confirmam relatos dos ensaios abertos e das apresentações. É intérprete de grande alcance emocional, empatia, concentração.
Em contraste com essa dramaticidade inicial, ainda no primeiro e mais aperfeiçoado dos três atos de “Odisseia”, surge no palco uma Luciana Paes hoje muito diferente daquela do início da Hiato.
Sua plenitude como comediante nem se limita mais à companhia, avançando pelo improviso de “A Gente se Vê por Aqui”, talvez o melhor da recente MITsp, e também pela comédia popularesca de “Hamlet ao Molho Picante”.
Como Calipso com Ulisses, Luciana conta como se prendeu por tempo demais ao amante chileno, até deixá-lo escapar, esgotada, num relato de extrema exposição pessoal.
Os quadros seguintes arriscam formatos muito variados, alguns menos lapidados, como a interpretação de uma carta da mãe de Aura por Fernanda Stefanski, outros mais, como a Circe libertina e sedutora de Maria Amélia Farah.
Paula Picarelli, que já vem de um solo independente no ano passado, ergue uma Atena que remete ao melhor dos monólogos anglo-americanos recentes, de autores-atores como o suicida Spalding Gray.
Com a deixa de estimular Ulisses ao confronto, ela se rebela contra a política contemporânea, brasileira sobretudo, em comentários cada vez mais furiosos —dos quais se pode discordar, mas com os quais é inevitável se identificar quanto à forma: o ódio.
Se Paula, firme e incisiva como Luciana, é hoje muito diversa daquela de “Escuro” (2009), Aline Filócomo é como uma reserva da vulnerabilidade, da fragilidade juvenil dos primórdios da companhia que reuniu tantas atrizes.
Mas é ela quem questiona e desmonta a fidelidade de Penélope, que espera 20 anos por Ulisses, jogando contra o próprio personagem com um caraoquê de canções românticas e com vídeos em que compara seu amor ao de cão.
As quatro horas e meia passam rapidamente, leves, ajudadas pela entrada, quando o público bebe pinga e conversa com o elenco, o que se repete nos dois intervalos, quando também se pode comer.
Dito isso, diferentemente dos demais espetáculos da Hiato, inclusive com os amadores de “Amadores” (2016), este parece não ter passado pelo apuro de dramaturgia de Leonardo Moreira. Novamente, é como se ele quisesse, para estes dez anos, abrir o microfone.