Na encenação de ‘1984’, o Grande Irmão é também o espectador
1984
★★★★
Sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h, no Sesc Consolação, r. Dr. Vila Nova, 245. Ing.: R$ 12 a R$ 40. Até 8/7. 14 anos.
Levando ao extremo aquilo que o próprio original insinuava, a peça “1984”, em cartaz no Teatro Sesc Anchieta, dissolve a possibilidade de achar um vilão —fora de nós mesmos— para a realidade distópica contemporânea.
O pouco que restava de eco romântico na obra célebre do também inglês George Orwell, publicada em 1949, já ecoando negativamente “Nós”, do russo Yevgeny Zamyatin, de 1921, parece se perder de vez.
A montagem faz desacreditar do protagonista, Winston Smith, de seu relato, num acúmulo de questionamentos dos fatos, do que teria realmente ocorrido, espelhando a chamada pós-verdade atual.
O desmonte generalizado da realidade já estava presente na produção londrina, adaptada há quatro anos pelos autores/diretores Robert Icke e Duncan Macmillan, mas surge acentuado pelo diretor Zé Henrique de Paula.
Como os personagens, o público é levado a “duplipensar”, a embarcar em narrativas conflitantes, num vaivém extenuante, até não acreditar em nada —destruindo a “suspensão de descrença” que seria característica do teatro.
Um dos fios que se rompem desde logo é a suposta paixão de Winston por Júlia. A exemplo da montagem londrina, a brasileira isola as cenas românticas em vídeos, num realismo de “reality show”.
Zé Henrique de Paula acentua uma impressão que o espectador já tinha diante da produção original, de que o público é, ele também, parte do Grande Irmão que assiste, vigia e oprime o casal em seu idílio inconvincente.
Nos vídeos, os atores Rodrigo Caetano (Winston) e Gabriela Fontana (Júlia) surgem falsamente bonitos, a exemplo do que acontece com personagens como Goldstein (Rodrigo Lombardi) e o Criminoso (Bruno Fagundes).
Uma diferença grande entre as montagens é que, enquanto a londrina ressoava as revelações de Chelsea Manning sobre vigilância digital global, a brasileira remete ao Big Brother da televisão e às “fake news”.
Repete-se assim o fenômeno que envolve o romance de Orwell, que desde a sua publicação parece responder topicamente às diferentes formas que a opressão vai tomando, a cada novo flagrante histórico.
Dito tudo isso, a confusão do público ao longo da apresentação, com seus vários ambientes e tempos, inspirados em parte pelo apêndice do livro sobre “os princípios da novafala”, escritos no futuro, provoca distração, dispersão.
Sua desordenação, com “dimensões” contraditórias ao mesmo tempo no palco, é característica já da adaptação de Icke e Macmillan, mas não é uma qualidade, não para todos os públicos —e podia ter sido atenuada na encenação.
Em momentos, como no terço final, o alheamento diminui, em parte pela inter-relação e pelas boas atuações de Caetano e de seu algoz ou mentor, O’Brien (Carmo Dalla Vecchia), mas também pelo fascínio contemporâneo da ultraviolência.