Crítica: Com Ricardo Bittencourt, o Boca do Inferno visita o Brasil de hoje
Nelson de Sá
Duas décadas atrás, o ator Pedro Paulo Rangel, dirigido por Moacir Chaves, confirmou o quanto havia de teatral em Antônio Vieira (1608-97).
Pode-se dizer o mesmo agora do ator Ricardo Bittencourt, roteirizado e dirigido por João Sanches, com relação a Gregório de Matos (1636-96).
Ambos, o Padre Vieira e o Boca do Inferno, são os representantes maiores de um momento de fartura da literatura oral, no Brasil em formação. Tanto a oratória de púlpito do primeiro quanto a poesia de rua do segundo exigiam espetáculo.
O padre, com seus gestos, sua expressão voltada para diferentes públicos; o poeta, com suas “letrilhas para cantar” e a viola de cabaça que carregava.
Como no teatro também barroco de Shakespeare, seus solilóquios e canções, é na apresentação ao vivo que a complexidade da construção consegue vir mais à tona. Obviamente também se pode apreciar verso e prosa barrocos no papel, mas desfrutar seu impacto cheio requer um intérprete, um orador que seja.
Bittencourt, como Rangel antes dele, é um intérprete com humor sempre à espreita e um orador de locução precisa e retumbante.
O Vieira de Rangel/Chaves era engraçado e com traços modernizantes de programa de auditório e desfile de Carnaval, no “Sermão da Quarta-feira de Cinza” –que volta e meia retorna ao cartaz.
O Gregório de Bittencourt/Sanches é ainda mais engraçado e modernizante, com guitarra ao vivo, de Leonardo Bittencourt, tocando até riffs de Nirvana e Ramones.
O Boca do Inferno, apesar das construções barrocas, é mais popular, mais vulgar e mais diretamente crítico. Do poema destacado no programa da peça, sobre a Bahia, e que é repisado na apresentação:
“De dous ff se compõe/ esta cidade a meu ver:/ um furtar, outro foder”
Quando o espetáculo ataca Salvador e o Recôncavo Baiano, que então já somava 150 mil habitantes, o espectador compreende de imediato que é do Brasil, até hoje, que se está falando.
O Gregório da visão romântica, meio nacionalista e muito devasso, um rebelde contrário à ordem, prossegue no espetáculo –em direção diversa de pesquisas acadêmicas recentes, que veem sua sátira a serviço da ordem, punindo desvios.
Mas “Boca a Boca” já traz o outro lado de Gregório, dos poemas cristãos, piedosos, também realçado recentemente.
Como confirmam as breves e úteis intervenções biográficas ao longo da apresentação, também ele é fruto do experimento jesuítico que foi a construção do Brasil, devendo sua formação em grande parte ao Colégio de Jesus, como Vieira.
BOCA A BOCA: UM SOLO PARA GREGÓRIO
QUANDO qui. a sáb., 20h30; até 24/3
ONDE Sesc Pinheiros – auditório, r. Pais Leme, 195, tel. (11) 3095-9400
QUANTO R$ 7,50 a R$ 25
CLASSIFICAÇÃO 12 anos