Com Marcelo Drummond, ‘O Rei da Vela’ vai à tragicomediorgya

Nelson de Sá

Nelson de Sá

Não é tarefa fácil substituir Renato Borghi como Abelardo 1º. Ele criou o papel em 1967 e, mais que isso, foi quando leu em voz alta todos os personagens, diante de Zé Celso, que o diretor se convenceu do que tinha nas mãos. Até então, pensava que Oswald de Andrade e sua peça de 1933 eram datados.

O sarcasmo e a demolição tenaz do país e de seus horrores são materializados por Borghi, como se confirmou na remontagem de “O Rei da Vela” no Sesc Pinheiros, 50 anos depois da estreia histórica.

A peça retornou agora com a mesma encenação e com Marcelo Drummond, o protagonista da tragicomediorgya * dos anos 1990, de “Ham-let”, “Bacantes” e “Boca de Ouro”, no papel de Abelardo 1º. É uma interpretação de outro carioca que carrega muito da trajetória do teatro popular do Rio, de comunicação direta.

Marcelo Máximo de Almeida Pizarro Drummond, que se formou noutro Rio, aquele do Baixo Leblon de Cazuza, evidencia não se tratar de peça histórica sobre os anos 1930 ou sobre São Paulo e a burguesia paulista, mas de um flagrante do Brasil derrisório de hoje e sempre.

As referências se tornam compreensíveis, tudo fica claro e contemporâneo, talvez por ser de geração pós-ditadura, ainda menos apegado à São Paulo dos anos 1930, mas mais provavelmente pelas marcas próprias do ator, que desde Hamlet e Dioniso rejeita representar.

Drummond foi trabalhado pelo diretor desde 1986, quando veio para São Paulo e o Oficina, para presentar, estar presente, dirigir-se ao espectador como quem fala a outro intérprete, todos em cena, como personagens e como atores.

E ele esclarece o que fala, é consciente do propósito de cada palavra e o expressa. Uma inteligência generosa que já se evidenciava em seus primeiros passos, há 25 anos, em “Ham-let”, que cotraduzi com ele e o diretor.

(Os questionamentos superficiais que ouviu então, na “peça de vingança” que reabriu o Oficina e marcou o retorno de Zé Celso, como ciciar —sibilar, emitir um ruído agudo constante, como Cazuza— e até mesmo sua sexualidade aberta em cena, ficaram definitivamente pelo caminho.)

Quando Abelardo 1º mergulha em quase solilóquios, sobretudo no terceiro ato, o que se tem é a mesma gravidade sobre o Brasil que se sentia em sua interpretação da casta-testamento de Vargas, em “Walmor y Cacilda 64”, do ciclo Cacilda —sem jamais perder de vista, no caso de Drummond, que “a alegria é a prova dos nove”.

Com ele, a atualidade de “O Rei da Vela” se transforma em urgência, em alarme, para o enfrentamento do neofascismo ascendente, como em 1933 e em 1967. A reestreia no Teatro Sergio Cardoso aconteceu, não à toa, no dia da intervenção militar no Rio.

Neste domingo (25), o espetáculo faz a sua última apresentação. Talvez realize uma temporada no Rio, na Cidade das Artes de Christian de Portzamparc, e outra em Sesc Santos, mas ainda não tem nada certo. E vem aí “Roda Viva”.

* Na definição de Zé Celso: ‘A vida é trágica; mas ela é cômica. E é orgiástica. Eu defino assim, tragicomediorgya. Não basta a tragicomédia, tem que ter a orgia, que é a origem do teatro. Não só a orgia sexual, mas em todos os sentidos’.