Crítica: Com Ana Cecília Costa e Tuna Dwek, ‘A Tartaruga de Darwin’ escapa do teatro de tese

Nelson de Sá

Sob a capa de uma quase brincadeira ou piada, em torno de um réptil que evoluiu até se tornar humano, a encenação de “A Tartaruga de Darwin” fere seguidamente, quando a guarda do espectador está baixa, com estocadas sobre as relações pessoais, a academia, o ciúme.

Não é a primeira vez que o texto do espanhol Juan Mayorga é montado no Brasil, o próprio dramaturgo se tornou figura fácil nos palcos daqui, mas esta nova montagem é especialmente feliz na seleção do elenco, a começar pela tartaruga do título.

Já experiente na linguagem do autor pelo trabalho em “A Língua em Pedaços”, a protagonista Ana Cecília Costa, com poucos gestos e um humor contido, com ar ausente e fumando sem parar, remete ao que sobrevive do animal sob sua transformação —e ao conhecimento que acumulou sobre a humanidade.

Também o mobiliário em cena e a forma como é usado por Henriqueta, o nome da tartaruga, fazem remissões subliminares ao ser meio humano, meio réptil.

Algo semelhante acontece, na interpretação, com o historiador de Marcos Suchara, de uma vaidade intelectual reprimida, mas borbulhante, que vem à tona quando ele enxerga a chance de se destacar perante os colegas com achado tão raro, que bate à sua porta.

Por outro lado, como que espreitando das coxias, as entradas de sua mulher concentram muito da sátira do espetáculo, que é humor verbal, que vaza dos diálogos cumulativamente insólitos.

No papel, Tuna Dwek assiste e reage, com um olhar cotidiano, comezinho, à disputa entre o professor de história presunçoso e o médico insensível de Diego Machado, pela mente e pelo corpo da tartaruga.

Num registro bem diferente dos demais, menos “fabular” e mais irônico, é Dwek quem faz a ponte com a realidade, com o público, expondo os demais personagens e a própria situação da peça, aqui e ali, ao ridículo.

Dito isso, o painel histórico que Mayorga procura desenhar com os quase 200 anos de memórias da tartaruga, que esteve presente em tanta coisa, como a Revolução de 1917 ou a Guerra Civil Espanhola, não é especialmente revelador ou engraçado.

De maneira geral, não se trata de uma dramaturgia que engaja o espectador, mas quase um teatro de tese, no caso, histórica —algo que já se entrevia noutros textos do autor apresentados ao longo desta última década em São Paulo.

A encenação também não alcança o impacto anterior obtido pela diretora Mika Lins, tanto visual como dramaticamente, em espetáculos como “Palavra de Rainha”. O jogo entre os atores é o que tira de melhor, desta vez.

Uma versão desta crítica circula na edição de 15 de dezembro de 2017, com o título “Atores resgatam ‘A Tartaruga de Darwin’ do teatro de tese”