Crítica: Com ‘Céus’, Wajdi Mouawad usa thriller de espionagem para vencer resistência e fazer pensar
Sobrevivente da guerra civil libanesa (1975-90), que ameaça recomeçar, o autor de “Céus” escreveu o que poderia ser descrito como thriller de espionagem digital, não fosse tão próximo da realidade, em versão até contida.
Não a realidade do Líbano, mas aquela que mantém países ocidentais como a França em vigilância intermitente, contra atentados. A partir dos dez anos, Wajdi Mouawad passou a viver no país, onde sua família se refugiou.
O cenário da peça lembra um abrigo, em atmosfera isolada e paranoide, na qual uma equipe de analistas de inteligência corre para identificar novo ataque, em meio a disputas com burocratas que os controlam à distância.
“Incêndios”, peça de Mouawad que também tinha Felipe de Carolis como produtor e ator e Aderbal Freire-Filho como diretor, foi bem recebida no Brasil porque, ao menos em parte, erguia uma ponte para o passado libanês.
Desta vez, refletindo como o fluxo de imigrantes acentuou a xenofobia europeia e também a brasileira, confirmada em episódios de violência em São Paulo e Rio, o foco da atenção do autor está nos ocidentais encurralados.
Formalmente, lembrando “Incêndios”, a história parece correr em dois planos, um de caráter mais público, com analistas em conflito quanto às hipóteses a perseguir, e outro individual, com o impacto sobre a vida de cada um.
O envolvimento pessoal é enfatizado pela presença em vídeo do próprio diretor, que gravou mensagens no papel do analista que se suicida antes do início da peça e deixa pistas sobre sua morte —e sobre o ataque em preparação.
O suspense se estabelece assim de maneira facilmente identificável para plateias contemporâneas, acostumadas aos filmes policiais hollywoodianos, e o espectador segue a trama com atenção.
Com o público tendo baixado a guarda, entram os diálogos inteligentes e as situações inesperadas armadas por Mouawad, confundindo referências e valores. A qualidade do texto, como antes, é o grande atrativo de “Céus”.
Aborda terrorismo, por exemplo, não como fenômeno derivado necessariamente de extremismo religioso ou político, mas como resposta a agressão anterior. E desta vez ele não oferece conforto ou saída do círculo de terror.
O ambiente asfixiante, os raciocínios intrincados de análise digital e o recurso constante à tecnologia, em aparelhos e cenas projetadas, aproximam “Céus” de uma distopia, mas é também golpe de teatro, outra armadilha.
Como evidenciado no desempenho de parte do elenco, são as relações humanas que importam. Desta vez sem atores estelares como acontecia em “Incêndios”, personagens, diálogos e a própria história concentram o foco.
O teatro carioca não comercial, não musical, pelo pouco que se recebe em São Paulo, vive momento especial. “Tom na Fazenda”, com duas apresentações na cidade, é até agora, no que foi possível assistir, a peça do ano. “Céus” é da mesma safra.
Atores como Isaac Bernat, que faz o sensato e acuado líder da célula de inteligência, e um trágico Marco Antonio Pâmio, arrebatado pelo destino de um filho que tenta abraçar à distância, retratam bem o mundo de Mouawad.
Mas a referência é Felipe de Carolis, que interpreta o jovem analista que substitui o suicida —e busca desesperadamente compreendê-lo, compreender os que sofrem e os que cometem violências, levando o público com ele.
Uma versão desta crítica circula na edição de 10 de novembro de 2017 com o título “Mouawad subverte a narrativa sobre o terror”