Crítica: ‘Cantando na Chuva’ encanta nos números musicais, mas tropeça na trama
A montagem brasileira de “Cantando na Chuva” apresenta um descompasso, logo evidente. A estrela é Claudia Raia, veterana do teatro musical, em cena desde uma histórica interpretação de Sheila em “A Chorus Line” em 1983, mas o protagonismo do espetáculo está em outros três personagens.
O filme original de 1952 acompanha o momento de passagem do cinema mudo para o falado, através de um trio de artistas.
O papel que Raia interpreta, cômico, de uma atriz que não tem voz para os novos tempos, não era central no filme, mas acaba se tornando, na montagem. É o que a plateia demanda: Raia, a estrela, a vedete —e o resultado é desequilíbrio, uma apresentação em que a trama tropeça, não se desenvolve.
O filme já era confuso, ao amontoar músicas da dupla Nacio Herb Brown e Arthur Freed apresentadas antes em revistas da Broadway e até em outras produções hollywoodianas dos anos 1920 e 30, inclusive a canção-título.
Um de seus quadros célebres, “Broadway Melody”, com Gene Kelly e Cyd Charisse, é um enxerto, sem vínculo com a história, quase uma intervenção metalinguística. Na versão brasileira, ele se torna ainda mais estranho, porque é Raia quem surge, de repente, como a dançarina.
Ela faz uma demonstração virtuosa de movimentos, quase sufocando o Don Lockwood de Jarbas Homem de Mello, mas o que sobressai são seus músculos, seu vigor, não a sensualidade original.
Os três atores centrais, Mello, Bruna Guerin e Reiner Tenente, são todos provados profissionalmente —sobretudo o primeiro, com uma naturalidade, uma facilidade, um óbvio prazer em cena que remetem inevitavelmente a Kelly.
Como em quase todos os seus espetáculos recentes, Mello é um esteio, um porto seguro no palco, tanto para outros atores como para o público, quando a apresentação ameaça perder o norte.
O quadro que encerra o primeiro ato, “Cantando na Chuva”, é o “showstopper” em parte por ser a canção mais conhecida e pelo efeito da chuva que impressiona loucamente a plateia. Mas em parte também —ou principalmente— pela graça contagiante com que Mello canta, dança e vive, mais do que Don Lockwood, Gene Kelly.
Obviamente, ele não é Kelly, marco do sapateado, da dança e até da coreografia no século 20, mas a nova representação de Mello não fica atrás de seu arrebatador Chaplin, de dois anos atrás.
“Cantando na Chuva” se tornou o filme mais feliz já realizado, como descrevem alguns, a partir da história de amor entre Lockwood e Kathy Selden, casal que tem o amigo Cosmo Brown como anjo irônico e protetor.
Um dos problemas da montagem é que o romance vivivo por Mello e Bruna Guerin, que faz Kathy, não decola, talvez pela sombra de Raia. A aura romântica de Guerin, ainda assim, é reafirmada em algumas de suas passagens mais emocionantes.
A comédia de “Cantando na Chuva” corre em torno de Reiner Tenente, que interpreta Cosmo, e em três paródias de figuras de Hollywood, feitas com humor sem travas por Sérgio Rufino, Dagoberto Feliz e Nábia Villela.
Pouco conhecido em São Paulo, mas referência do musical no Rio, o ator enfrenta sem medo os números clássicos de Donald O’Connor, inclusive “Faça Rir” (Make’Em Laugh), e arrebata o público passo a passo.
Vale sublinhar como as letras traduzidas por Mariana Elisabetsky e Victor Mühlethaler confirmam um salto nas versões de musicais no Brasil. São transcriações que, em vez de causar estranhamento, aproximam o espectador dos originais.
Soam até, por vezes, mais ricas e cativantes. De qualidade já evidenciada em “Rent”, Elisabetsky parece pronta para desafio maior: revelar por aqui, de fato, o compositor e letrista Stephen Sondheim.
Uma versão desta crítica circula na edição de 25 de agosto de 2017 com o título “Peça encanta nos números e tropeça na trama”