Crítica: Em ‘Isso Não É um Sacrifício’, Fernando Bonassi delata a injustiça que deriva do ódio

Nelson de Sá

No final de domingo (25), havia skatistas pelas calçadas diante da SP Escola de Teatro, onde “Isso Não É um Sacrifício” faria sua reestreia. Alguns atônitos, sob o choque do ataque que haviam sofrido, perto dali, quando um carro avançou sobre eles por 400 metros.

A cena como que continuou depois, na apresentação do monólogo escrito por Fernando Bonassi, encenado por Christiane Tricerri e representado por Fernanda D’Umbra.

“Isso Não É um Sacrifício”, sem tratar diretamente dos incontáveis episódios recentes de intolerância na cidade, expressa-os de maneira essencial. Remete alegoricamente ao apedrejamento de uma mulher, a uma caça às bruxas.

Desde os seus primeiros textos para teatro há duas décadas, em pequenas ou grandes peças como “As Condições do Trabalho” e “Apocalipse 1,11”, Bonassi retrata os extremos da opressão, do sufocamento do mais fraco.

Não aponta saídas, apenas tira o retrato das misérias. No caso, uma mulher descreve o ódio que cresce em torno dela: “Querem me extirpar. Como um tumor. Que insiste em retornar… Estão ciscando e rondando como as polícias que pagam com migalhas e em quem não podem confiar para se proteger das garras de si mesmos”.

O cenário recorrente de Bonassi, de violência na rua ou no sistema judicial, é quase sempre incisivo, mas nem sempre agradável.

O dramaturgo não concede às demandas costumeiras do público —como poderia ser o caso, aqui, de referências mais diretas à realidade ou algum humor, como aquele que às vezes dava as caras quando ele começou no teatro.

Mas isso é contraposto, em parte, pela atuação de D’Umbra, atriz que costuma dar vivacidade e variedade aos seus personagens, um encantamento que contagia as situações mais desesperadoras.

No caso, ela chega a cantar uma passagem do texto, invariavelmente com o olhar irônico, acusador, colado nos rostos da plateia muito próxima, de 30 lugares. Sorrindo, julga seus juízes e carrascos.

D’Umbra é apoiada por dois instrumentistas, músicos que, como ela, interpretam o espetáculo frase a frase, introduzindo nuanças.

É uma peça estática, que depende muito das palavras e da atriz. Seu figurino-cenário lembra outro, de “Palavra de Rainha”, de 2014, mas agora o vestido aprisiona e enforca a personagem, com detalhes que se reportam a cordas e até um hijab.

Tricerri, mais lembrada como atriz de comédias populares como “Ubu” ou “Sonho de uma Noite de Verão”, segue linha de maior risco como diretora.

Como demonstrou em outras montagens, caso de Maria Alice Vergueiro numa impactante “Medea”, também mais de duas décadas atrás, explora agora as características mais combativas de sua atriz e as sugestões mais controversas de seu texto.

Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 27 de junho de 2017 com o título “Peça sobre violência delata a injustiça que deriva do ódio”