Crítica: Com músicas dos anos 1980, ‘A Era do Rock’ ri de si mesmo e até emociona

Nelson de Sá

É música barata, ruim. Mas como resume uma das citações mais repetidas, nestes tempos de musicais jukebox, do comediógrafo e compositor inglês Noël Coward, “é extraordinário como música barata é potente”.

Coisas abomináveis dos anos 1980 como “Don’t Stop Believin’”, da banda Journey, têm efeito emocionante mais de três décadas depois, no espetáculo “A Era do Rock”.

É uma comédia musical de sucesso sobre dois jovens sonhadores interioranos, ele vocalista, ela atriz, que encontram a realidade em Los Angeles.

O cenário é um bar inspirado no hoje turístico Whisky a Go Go, na Sunset Strip, de onde saíram bandas como Van Halen e Guns N’ Roses, entre várias outras, antes e depois daquela década.

Se não chega a ter o desenvolvimento dramatúrgico de “Mamma Mia”, outro musical jukebox de qualidade, “A Era do Rock”, “Rock of Ages” no original, é mais engraçado e derrisório.

Como admite um de seus personagens-atores, que volta e meia falam diretamente à plateia, ele se imaginava num musical de Sondheim, mas acabou ali, cantando Whitesnake.

A equipe brasileira do espetáculo é a mesma de “Nas Alturas”, bela montagem de 2014, quando eram todos iniciantes —a começar pelo compositor, o americano Lin-Manuel Miranda, consagrado depois por “Hamilton”.

O grande motor de “A Era do Rock” é novamente Ricardo Marques, produtor, versionista e ator, no papel de Stacee Jaxx, uma caricatura de vocalista de banda de rock pesado: abusivo, temperamental, ridículo.

Não é o protagonista, mas é quem retrata melhor aquela cena roqueira, naquela década, a ponto de sua eventual ausência do palco desacelerar a trama.

Na versão para o português, ele acertou ao evitar traduzir as letras, tão conhecidas, e ao introduzir ou permitir cacos sobre o Brasil —uma das piadas de maior efeito envolve o Capital Inicial.

Marques, o diretor Léo Rommano e o diretor musical Paulo Nogueira, a equipe central de criação, conseguem estabelecer um ritmo cômico que deixa para trás os limites do roteiro e alcançam integração consistente entre as canções e a narrativa.

Abrem caminho assim para boas caracterizações, a começar pelo casal romântico de Diego Montez (Drew) e Thuany Parente (Sherrie).

Parente, em seu primeiro personagem de destaque, revela uma das vozes mais singulares a surgir no teatro musical paulistano em muito tempo, de grande sustentação dramática, que remete a Dolly Parton. Misto de ingênua e mártir, permite que o sexismo da época seja retratado de forma crua, mas sem abalar a comédia.

De voz ainda mais assombrosa, desde as primeiras notas, é Shirley Oliveira, que vive a dona de um clube de strip.

Estreante como ela, o narrador Gabriel Bellas, que faz o gerente do bar, é o grande achado da nova produção —como já havia acontecido com “Nas Alturas”, que revelou Myra Ruiz.

Desenvolto, provocador, é muito engraçado e aproveita bem as melhores frases da apresentação, saltando continuamente entre a narração para o público contemporâneo e os diálogos da época —e com uma voz à altura da época.

Em tempo: A citação de Coward é de “Vidas Privadas”, de 1930, e aparece como comentário da co-protagonista Amanda depois que a canção “Some Day I’ll Find You” a leva a reatar com Elyot: “Extraordinary how potent cheap music is”. Noutra versão, “Strange how potent cheap music is”. Grande standard de Coward, “Some Day I’ll Find You” não é “cheap music”, longe disso.

Uma versão desta crítica circula na edição de 9 de junho de 2017 com o título “‘A Era do Rock’ ri de si mesmo e até emociona”