Crítica: Como outros musicais originais, ‘Lembro Todo Dia de Você’ se perde pelo caminho
De Miguel Falabella a Möeller & Botelho, a busca de um musical nacional de fato, com composições originais, como aqueles de Chico Buarque ou Chiquinha Gonzaga (1847-1935), é um sonho recorrente. E frustrante, a cada nova tentativa.
Não é diferente agora, com “Lembro Todo Dia de Você”, da dupla Zé Henrique de Paula & Fernanda Maia, com composição de Rafa Miranda. Algumas canções emocionam, mas a coesão de música, letras e história, que é a origem do musical contemporâneo, não acontece.
O problema desta vez é que a trama não se desenrola pela música. São os diálogos que tocam o enredo.
Diálogos não são o forte de Maia, que escreveu o texto, o chamado libreto, com a colaboração de Zé Henrique de Paula e Herbert Bianchi, a partir dos depoimentos de cinco rapazes com HIV.
Maia responde, neste espetáculo, por texto, letras, direção musical e execução, como pianista. Mais uma vez, o que ela faz comprovadamente melhor, como se viu em “Urinal” e no recente “Senhor das Moscas”, está na música.
A limitação no roteiro se evidencia no final, com a cena de um julgamento. É uma sessão de terapia, um longo e estático quadro comandado por um analista, quase todo em diálogos, no qual a música tem função ilustrativa.
Até então, com altos e baixos e apesar do figurino em maçantes tons de cinza, o musical acontecia. Melhor seria se tivesse prosseguido assim e tornado a cena final uma apoteose.
Talvez devido à inexperiência em dramaturgia, o espetáculo acaba por retratar a Aids, hoje, com um enviesamento sentimental, piedoso —exigindo o mesmo do público.
Contrasta com a produção teatral no momento de maior terror da doença, há mais de duas décadas, quando “Angels in America” e o musical “Rent”, por exemplo, mesclavam excessos de tragédia e comédia.
Além do texto, também as atuações vão por uma trilha melodramática. Embora seja um intérprete perfeito para o protagonista Thiago, tanto física como emocionalmente, Davi Tápias se perde —e ao público— quando é levado a chorar durante uma meia hora.
“Lembro Todo Dia de Você” tem parentesco, inclusive uma bela canção intitulada “Lado a Lado”, com “Company”, o musical histórico de Stephen Sondheim sobre um jovem solitário e suas relações com o mundo.
Mas aquele, a partir das canções, ergue papéis com contornos definidos. No brasileiro, ao contrário, os namorados de Thiago surgem como tipos que se definem em conversas rápidas.
Não faltam qualidades esparsas nesta nova encenação do Núcleo Experimental de Teatro, a começar pela cenografia engenhosa como sempre, para o espaço também diminuto do CCBB, desta vez unindo projeção de texto a uma parede vazada para a orquestra.
Também as interpretações, dos namorados à mãe, têm boas passagens, ainda que fugidias. Os momentos mais consistentes de luz, neste espetáculo cinzento, acontecem quando entra em cena a atriz que faz a melhor amiga de Thiago, Bruna Guerin.
Uma versão desta crítica circula na edição de 29 de maio de 2017 com o título “Como outros musicais originais, ‘Lembro Todo Dia de Você’ se perde pelo caminho”