Crítica: Em ‘Senhor das Moscas’, tão perturbador quanto o original, música acentua o mal que existe em cada um

Nelson de Sá

O horário das apresentações confunde, nas tardes geralmente dedicadas ao teatro infantil. E muito da atuação, com jovens adultos dando traços infantis a seus gestos e vozes, não ajuda. Mas o público percebe logo que “Senhor das Moscas”, com suas primeiras e pequenas crueldades, não tem como passar por peça para crianças.

O romance perturbador do inglês William Golding, lançado em 1954, e a primeira versão para o cinema dirigida por Peter Brook quase dez anos depois popularizaram a história, que pouco tem de aventura, de robinsonismo.

O enquadramento é o mesmo de “Robinson Crusoé” e outros do gênero: jovens isolados numa ilha, por acidente, e os obstáculos que enfrentam para sobreviver. Mas o que poderiam ser peripécias se tornam, em Golding e agora no musical dirigido por Zé Henrique de Paula, pesadelo.

É uma distopia adolescente muito diferente das que povoam Hollywood com heroínas —e próxima de séries de televisão como “Lost”, expressamente inspirada no livro. Próxima também, é importante anotar, do comportamento e do discurso público degradado no Brasil e em grande parte do mundo, hoje.

Em “Senhor das Moscas”, até o protagonista, com o qual o público se identifica como representante da democracia e da racionalidade, é um assassino à espreita.

Na trama, uma dúzia de estudantes sobrevive à queda de seu avião e tenta se estruturar, elegendo o sensato Ralph (Bruno Fagundes) como líder, mas logo se fraciona em dois grupos, o segundo chefiado pelo invejoso e cada vez mais fascista Jack (Ghilherme Lobo).

A adaptação para o teatro feita por Nigel Williams em 1995, com a cooperação de Golding, acelera o andamento da história, privilegiando a ação sobre o raciocínio. Como resultado, acontecimentos como a primeira morte surgem abruptamente no palco, pouco preparados —o que a direção poderia ter minimizado ao invés de, com mais cortes, acentuado.

Mas quando a irracionalidade se instala, quando o mal se dissemina alegoricamente a partir do corpo do piloto, pendurado numa árvore, e do deus das moscas do título, a cabeça de um porco caçado por Jack e seu grupo, o horror envolve não só os personagens, mas a plateia.

A bestialização cada vez maior é pontuada pela seleção e execução das músicas, a mais rica e nuançada da diretora musical Fernanda Maia —até onde foi possível acompanhar de seus trabalhos com Zé Henrique de Paula.

Carregada de cantos corais e intervenções de sonoplastia, acentua serem crianças mental e fisicamente indefesas e marca, como numa brincadeira, seu descenso até se transformarem em corja. É o grande diferencial desta nova versão de “Senhor das Moscas”, o que a torna única.

O musical é perturbador como o livro, mas não faltam problemas, como a citada caracterização infantil, principalmente das vozes, que cria um estranhamento, uma barreira desnecessária.

Os protagonistas, não só Fagundes e Lobo, mas Felipe Hintze, que faz o intelectual Porquinho, e Thalles Cabral, o epilético e fantasioso Simon, ainda estavam se adensando em seus personagens, quando vistos. Eram representações promissoras, mas inseguras, inclusive no canto. E o pesadelo da história parecia afetá-los, no correr da apresentação, tanto quanto aos espectadores.

Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 15 de maio de 2017 com o título “Música de ‘Senhor das Moscas’ acentua bestialização crescente”