Apesar de tropeços técnicos, ‘Rent’ arrebata mais uma vez em versão com Myra Ruiz
Arriscando com sessões só às terças e quartas-feiras, numa sala de 600 lugares e com apresentações de quase três horas, terminando perto da meia-noite, a nova versão de “Rent” já é vitoriosa pelo público que enche ruidosamente a plateia do Teatro Shopping Frei Caneca.
Há diversas razões para tanto, mas a principal é o apelo deste musical de 1996, que marcou o gênero em Nova York e pelo mundo. Em suma, são oito jovens artistas e outros que, como boêmios de fim de século, convivem na cidade em meio a falta de dinheiro e uma epidemia mortal.
Esta nova produção, à maneira da própria trama, é quase um esforço comunitário, entre amigos, financeiramente limitada. Lembra “Urinal”, outra montagem paulistana de menor porte.
Mas enfrenta um obstáculo específico: Na apresentação vista e, segundo relatos, em várias outras desde a estreia no final de dezembro, os microfones falham, pontualmente ou durante cenas inteiras, tornando difícil compreender o que é cantado e falado.
No teatro musical, a trama é em parte conduzida pelas letras, o que faz deste “Rent” um espetáculo por vezes torturante, em que o espectador se desliga de tudo mais para, simplesmente, tentar ouvir as boas versões de Mariana Elisabetsky para as letras de Jonathan Larson, também autor de música e texto.
Restringe-se a apreciação da encenação e das próprias vozes. E esta talvez seja a maior qualidade desta montagem: Embora jovens, são grandes atores-cantores. Intérpretes que abraçam seus papéis de forma enusiasmada, como requer o gênero. E até uma estrela recente, Myra Ruiz, de “Wicked” e “Nine”.
Ela traz ironia e uma abordagem menos engajada –e mais divertida– à relação entre duas mulheres, em comparação com aquela da Broadway. Como Maureen, sua “performance” dentro da peça funciona mais, com mais humor, do que a da ótima Idina Menzel em 1996.
A cena deve muito à diretora Susana Ribeiro e à coreógrafa Kátia Barros, que envolvem nela o elenco todo, de maneira inventiva e bem marcada, precisa –como se conhece do trabalho de intérprete de Susana na Cia. dos Atores, inclusive musicais.
Outros intérpretes chamam a atenção, tanto nos protagonistas como no coro. Neste, por exemplo, Guilherme Leal e Philippe Azevedo, quando chamados a solar, arrebatam. Entre os papéis centrais, Priscila Borges não fica atrás e tem a química perfeita com Myra/Maureen, como a confusa Joanne.
A lista vai longe, de Lívia Graciano como Mendiga a Diego Montez como Angel –e o produtor Bruno Marchi, que sofre como os demais com os cortes de microfone do narrador Mark. E principalmente Ingrid Gaigher, que faz uma Mimi quebradiça, de um romatismo lancinante, desde sua entrada em cena.
O problema, que se repete há duas décadas, é a cena da quase morte de Mimi, que fecha a peça –e quase nunca funciona. É tão inverossimilhante, destoa tanto do caminho seguido por “Rent” até ali, que exige um salto não realista, patético, que elenco e direção não conseguem dar.
(Uma alternativa, usada pelo diretor belga Ivo van Hove, é simplesmente matar Mimi.)
No cenário, a opção de Susana e do cenógrafo André Cortez por aproximar a história dos movimentos de ocupação ganhou pungência com as mudanças por que São Paulo está passando. Reflete o que o público vê nas ruas também “limpas” de barracas e pobres.
Os figurinos de Fause Haten e o visagismo de Leopoldo Pacheco são arriscados, coloridos e, mesmo com toda a diversidade que retratam, integrados. Dão vida própria e contam histórias para cada personagem, até os que mal existem na narrativa.
Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 25 de janeiro de 2017 com o título “Apesar de falha técnica, ‘Rent’ cativa”