Crítica: Incorreto, Falabella não combina com o Deus liberal da Broadway
Não se deve buscar aprofundamento espiritual em “God”, no original “An Act of God’, um ato de Deus, comédia que estreou em Nova York há pouco mais de um ano. O autor é David Javerbaum, que escreveu para o lendário “Daily Show” de Jon Stewart por mais de uma década.
A estrutura não é muito distante do programa, que era uma paródia de telejornal: Deus aqui é como um âncora que aborda criticamente a sociedade e a política contemporâneas, com apoio pontual de assistentes, no caso, os arcanjos Gabriel e Miguel.
Está mais para um amontoado de tiradas, “one-liners”, até por ter nascido de um perfil popular de Twitter mantido pelo autor. São piadas contrastando a religião cristã, sobretudo católica, com a realidade comportamental.
Miguel Falabella não deixa de ser Falabella ou a caricatura de si mesmo. Deus desce à Terra na pele do ator, que se autoelogia para efeito cômico, repetindo a fórmula de que abusa desde os tempos de seu primeiro monólogo, “Louro, Alto, Solteiro Procura…”, de 1994.
Desgostoso da humanidade, Deus-Falabella traz novos dez mandamentos, engraçados na forma como são apresentados, mas de mensagem mais ou menos séria. Por exemplo, “Separar-me-ás do Estado”, ou seja, nada de misturar igrejas com poderes públicos.
Muitos dos novos preceitos tratam de sexualidade e, de maneira geral, são liberalizantes, na direção contrária dos preceitos cristãos equivalentes. Determinam a aceitação da diferença, para começar.
Não por acaso, a peça é bastante elogiosa do papa Francisco, em confronto com o anterior, o agora papa emérito Bento 16. As piadas com este último são especialmente críticas.
É Javerbaum falando, mas “God” traz muito também que se pode creditar a Falabella, que é tradutor, adaptador e diretor. Seu personagem tem muito da ascendência sobre o público típica do ator.
Muito também de suas “boutades”, como isso ou aquilo ser “de pobre”. É politicamente incorreto e abertamente contrário ao liberalismo nova-iorquino do texto. Não casa muito bem.
A origem de Falabella como “performer” é no besteirol, ao lado de Guilherme Karan, vem daí seu humor popular e agressivo. Ao falar de homossexualismo, seu tom é completamente diverso e por vezes arrisca ser mais ofensivo às causas que Javerbaum defende do que à Igreja Católica.
Mas nem Javerbaum nem Falabella são tão graves assim. A peça se basta no riso solto, na comédia. O que tem de crítica é pouco controverso ou, pelo menos, assim era até a mais recente onda conservadora, tanto nos EUA como no Brasil.
No palco do mesmo Teatro Procópio Ferreira, era até inevitável: O que se tem é muito Caco Antibes, o personagem do ator no programa “Sai de Baixo” (Globo, 1996-2002), em diálogo direto e interação com o público, que está ali atrás disso mesmo.
A produção visa aparentemente uma turnê, como se observa pelo pequeno elenco e até pelo cenário, que reproduz o original do Studio 54 e se encaixa em qualquer palco, de Niterói ao interior paulista. É uma encenação que vai atrás de seu público e tenta passar a ele alguma mensagem.
E é curioso que o mesmo teatro tenha servido de palco também, até outubro, para um espetáculo que pode ser visto como o oposto deste “God”, o musical “Os Dez Mandamentos”, da Igreja Universal.
Ambos têm inspiração na Broadway e, mais importante, na sociedade americana, seja pelo liberalismo ou pelo neopentecostalismo. E moralmente reproduzem um conflito que vem de lá e é puritano à esquerda e à direita –o que tanto Falabella quanto a equipe do musical trataram de, brasileiramente, escrachar.
Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 2 de dezembro de 2016 com o título “Falabella não combina com o Deus da Broadway”