Crítica: Com precisão e equilíbrio, Marcio Aurelio apresenta um Molière inédito
A montagem da comédia clássica de Molière “O Misantropo”, até então inacreditavelmente inédita no Brasil (fora uma adaptação de Gilberto Braga para televisão), traz as marcas conhecidas do diretor Marcio Aurelio.
É um espetáculo rigoroso, as interpretações são precisas, o texto e suas implicações ganham clareza.
Apresenta um mínimo de efeitos, em figurinos, cenário, trilha sonora e iluminação, que evitam se sobrepor às interações dos personagens a cada nova cena, na festa em que a trama se desenrola.
Encenada pela primeira vez há 350 anos, a peça, se é que se pode resumir tanto, é sobre a falsidade na sociedade e questiona até que ponto é preciso aceitar as suas normas de convivência, as suas mesuras.
O protagonista é Alceste, o misantropo (segundo o Houaiss, aquele que odeia a humanidade, sente aversão às pessoas) que não se contém e questiona todos durante a festa.
Suas intervenções procuram retirar as máscaras de quem aparece à frente. Quase interrogatórios humorísticos, são como paródias de diálogo socrático.
“O Misantropo” é tida como a peça mais densa de Molière, o que é enfatizado pela encenação de Aurelio —contra a corrente contemporânea de buscar mais o riso, a farsa no comediógrafo francês.
O público não deve esperar o Molière popular e escrachado dos espetáculos de Cacá Rosset de duas décadas atrás. Sente-se até falta de alguma irregularidade, algum excesso, em se tratando, afinal, de comédia.
A eficácia desta montagem se vale em grande parte da interpretação de Alceste por Washington Luiz Gonzales, que não por acaso é também o tradutor e adaptador e um veterano da Cia. Razões Inversas, de Aurelio.
Seu misantropo é consciente de cada novo raciocínio. É dele o olhar ironicamente desconfiado, não superior, mas apartado do jogo de aparências, da hipocrisia reinante.
É como a calmaria no centro do redomoinho, no caso, social —que hoje equivaleria a alguma rede social, o que a encenação não explicita, mas o resultado é claro o bastante.
O rigor equilibrado do diretor explica uma das boas surpresas do espetáculo, a atuação de Paula Burlamaqui como Celimene, dona da festa, de comportamento frívolo, disputada por Alceste e outros.
A celebridade se revela atriz de palco, com uma representação firme e perspicaz, do início ao fim.
De Paulo Marcello como Oronte, o principal antagonista de Alceste, a Renata Maia como a jovem Eliane, as interpretações têm uma constância que garante a boca de cena para Molière, para a peça.
É um alívio que “O Misantropo” tenha recebido sua estreia por mãos experimentadas como as de Aurelio, em oportunidade talvez única para o público, em uma geração.
Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 30 de novembro de 2016 com o título “Marcio Aurelio trata Molière inédito com precisão e equilíbrio”