Crítica: Selfie
“Selfie” se apresenta como uma comédia contra o Grande Irmão, crítica das gigantes de tecnologia que controlam a vida, hoje. E propõe uma outra existência, utópica, com pipas em vez de smartphones.
O personagem de Mateus Solano não aceita mais sua existência nas mãos das corporações e decide concentrá-la numa plataforma criada por ele mesmo, MyClaudio, trocadilho com “cloud”, a armazenagem de dados em nuvem, e MySpace, rede dominante nos EUA até surgir o Facebook.
Mas a origem da peça é outra: ela vem da invasão de uma conta de mídia social de Solano, que aconteceu de fato, há três anos. Assim como a legislação de privacidade digital —a Lei Carolina Dieckman— surgiu para proteger uma celebridade que teve fotos vazadas, também na peça o que se tem é moral pautada por interesse individual. Uma ideia fora de lugar.
Solano, porém, não é só uma celebridade, como já mostrou em outras temporadas em São Paulo, daí o alcance maior de “Selfie”.
Independentemente das frágeis intenções morais, a peça é uma sequência de quadros cômicos muito engraçados, creditados em parte ao talento do protagonista, mas também de Miguel Thiré. É ele quem vive os personagens do entorno de Claudio.
Como já tinha evidenciado em “Do Tamanho do Mundo”, há dois anos, Solano desenvolve uma comédia física precisa, de grande efeito. Mas agora, no jogo de dupla que estabelece com Thiré, adota por vezes uma posição de “straight man”, contraponto sério ao virtuosismo de seu colega de escola teatral —ambos estudaram no Tablado.
Miguel Thiré, que vem de uma família de atores do Rio, neto de Tônia Carrero, filho de Cecil, irmão de Luísa e Carlos, é espetáculo à parte. A caracterização que dá para cada um dos 11 personagens, passando de um a outro com um gesto ou distorção na voz, é sempre surpreendente.
Pela história da peça, no instante em que Claudio vai transferir os dados para a sua própria nuvem, um problema técnico apaga toda a memória —de toda a sua vida— e ele passa o resto da apresentação tentando reconstituí-la, em encontros e reencontros com as pessoas do mundo real, vividas por Thiré.
A comédia é de apelo popular e, sob outro ponto de vista, retoma um trabalho de décadas do diretor Marcos Caruso no teatro. É dele, como autor, uma das comédias mais longevas nos palcos do país, “Trair e Coçar, É Só Começar”, que também dá vazão para ótimas atuações.
Em “Selfie” como em “Trair e Coçar”, desbastam-se as pontas de maior conflito social e controvérsia, em favor de um humor tirado de situações do cotidiano, uma comédia de costumes sem maiores consequências. É da tradição do teatro brasileiro e da sociedade, e promete longas temporadas. No caso de “Selfie”, já soma dois anos.
Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 27 de setembro de 2016 com o título “Solano faz rir despretensiosamente em comédia de costumes digital”