Crítica: A Reunificação das Duas Coreias

Nelson de Sá

Não se deve esperar o impacto de “Ça Ira”, atração da última Mostra Internacional de Teatro e um dos melhores espetáculos apresentados em São Paulo em anos, nesta nova peça de Joël Pommerat.

“A Reunificação das Duas Coreias”, antes de mais nada, não é sobre política. “Ça Ira”, que vem de receber o prêmio Molière de melhor espetáculo da França, é um grande retrato da Revolução Francesa, em linguagem contemporânea, não muito diverso de “Hamilton”, o festejado painel da Revolução Americana, premiado nos Estados Unidos.

“Duas Coreias” nem sequer trata das Coreias do Norte e do Sul. Elas representam os casais, quaisquer casais com relações no limite, refletindo amor ou violência que junta, separa, reunifica.

São cerca de 18 quadros, uns entremeando outros, alguns muito rápidos, que apresentam os personagens em conflitos irresolvidos. São cenas abertas, que indicam as situações sem tentar solucioná-las, deixando o público no ar, propositadamente.

Tem semelhanças com “Ça Ira”, no sentido de evitar juízo dos personagens, apontar mocinhos e bandidos. Mas os cortes são abruptos e o resultado em “Duas Coreias” é mais superficial, diante das intensas quatro horas, quase cinco, do espetáculo político.

Pommerat tem como referências os diretores Ariane Mnouchkine e Peter Brook, de quem carrega um certo espírito comunitário na criação e na cena, mas é de geração posterior, menos utópico, mais crítico e incrédulo.

É uma dramaturgia estimulante e bastante diversificada, não só nessas duas peças mas em outras, como “Cinderela”, também vista na MITsp e de estrutura mais tradicional. Pommerat não vê necessidade de se definir formalmente; aliás, mal se define entre ser dramaturgo e diretor, preferindo ser chamado de “écrivain de spectacle”, escritor de espetáculo.

“Duas Coreias”, como texto, é instigante, uma base forte para a construção do espetáculo. Mas o saldo aqui é um pouco frustrante, formalmente. O diretor João Fonseca, conhecido de grandes musicais, não usou toda a liberdade que tinha à mão.

Para começar, o original de Pommerat adotava um palco corredor —o “traverse stage”, formato seguido em teatros como Oficina e Sesc Pompeia— para uma maior aproximação do público com personagens e situações. Já nesta versão no MorumbiShopping o que se tem é o palco italiano, que separa, forma uma “quarta parede” entre atores e espectadores, que só é rompida pontualmente e para efeito cômico, não identificação.

Mas não faltam qualidades à montagem de Fonseca. Uma delas é o dinamismo, a vivacidade que alcança, num entrechoque de cenas que mal deixa tempo para o espectador raciocinar.

Outra é a qualidade constante e eclética dos sete atores, a maior parte com larga experiência, em gêneros diversos, como Letícia Isnard e Marcelo Valle. Solange Badim, ótima em musicais como “Rádio Nacional”, se destaca aqui como comediante. Gustavo Machado, de papéis dramáticos marcantes, chama a atenção agora pela música e pelo humor.

O elenco, que vem de temporada no Rio, carrega uma informalidade cômica que é própria da tradição da interpretação carioca e que funciona bem em “Duas Coreias”, mas acaba por retirar um pouco da crispação das situações, da tensão.

Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 23 de setembro de 2016 com o título “‘Coreias’ apresenta outro Pommerat à cidade”