Crítica: Gabriela, um Musical

Nelson de Sá

É uma encenação em que as músicas correm paralelamente à trama, sem vínculo direto, o que resulta num espetáculo por vezes disforme. “Gabriela, um Musical” não dá maior atenção ao eixo do gênero musical contemporâneo –as letras e canções contarem a história, levarem a ação adiante.

O formato que adota não é estranho ao musical, chamado de “jukebox” por reunir canções conhecidas, “hits”. Mas exigiria um esforço de integração mais profunda –como aconteceu no britânico “Mamma Mia”, com sucessos do Abba, e até no brasileiro “Se Eu Fosse Você”, com Rita Lee.

No caso, as três dezenas de músicas atiram para todo lado, juntando temas e ritmos diversos, compositores de Gonzaguinha a Lulu Santos. Músicas conhecidas num contexto engajado surgem noutro, romântico.

Apesar da evidente riqueza dos novos arranjos e dos instrumentistas, a linha narrativa acaba tropeçando nas letras das canções, em vez de ser costurada por elas, o que torna a noite ralentada. O esforço do espectador para tentar localizar a história nos versos é dispersivo.

A história de Gabriela como recontada pelo adaptador e diretor João Falcão, mais do que nas duas telenovelas e no filme, tenta enfatizar o drama social, de fazendeiros e retirantes, seguindo o romance. Procura mais Jorge Amado e menos Walter George Durst ou Walcyr Carrasco, que o adaptaram à televisão.

Mas o próprio Amado já não era, em 1958, ao lançar o livro, tão marcadamente socialista. E isso se reflete no palco, com o cenário político e social sendo sufocado seguidas vezes por sensualidade, individualidade, até um quadro final em que a personagem central se dissolve abruptamente no coro.

O que faz de “Gabriela” um prazer é a capacidade de seus atores de dar vida, naturalidade, ao que, à primeira vista, poderia soar artificial e até mesmo anacrônico e ofensivo –como a sedução de Gabriela por Nacib.

Em especial, é o caso da jovem atriz que faz a personagem-título, Daniela Blois, de beleza tão chamativa como a personagem nas telas, com um traço étnico mais claro, sertanejo. Embora estreante, quando ela aparece o palco e a própria história se iluminam –o que vem do papel, quase um mito, mas também dela, de sua singeleza.

Danilo Dal Farra também se destaca como Nacib, em parte pela atuação simples, até popular, tendo que enfrentar canções entre as mais descabidas do espetáculo. Já Marcel Octávio, de voz possante, responde por alguns dos melhores quadros propriamente musicais, no papel de Mundinho Falcão.

Veterano de espetáculos como “Galanga, Chico Rei”, uma das grandes criações recentes em musical brasileiro, com composições originais de Paulo César Pinheiro, o múltiplo e fascinante Marcelo Tizumba é o narrador que consegue dar sentido quando “Gabriela” ameaça sair à deriva. Junto com Daniela, é o sustentáculo da apresentação.

Simplicidade, singeleza, evidenciadas na interpretação em geral, são reforçadas pela direção de arte de Simone Mina, em sua estreia no teatro musical, pelas mãos de João Falcão –com destaque, na cenografia de ambos, para as esteiras rolantes, dos retirantes.

O figurino recortado de Gabriela, ao mesmo tempo remetendo a panos e cores dos retirantes e elaborando ricamente sobre eles, sobressai, mas também outros, das prostitutas do Bataclan, dos coronéis.

Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 28 de junho de 2016 com o título “Naturalidade do elenco sustenta adaptação musical de ‘Gabriela'”