Crítica: Garrincha – Uma Ópera das Ruas

Nelson de Sá

Talvez a plateia lotada do Sesc Pinheiros jamais tenha visto tantos atores negros, a maioria entre os 16 no palco. Foi um dos muitos estranhamentos que Bob Wilson, diretor de distante influência brechtina, criou para o público paulistano.

Antes de mais nada, em “Garrincha”, com o subtítulo “Uma Ópera das Ruas”, ele optou por um espetáculo não sobre o Brasil desesperançado deste momento, mas sobre o país de sonho.

Um espetáculo em que a tragédia, inclusive aquela pessoal, de Garrincha, está presente e é emocionante, porém mais presente está a fantasia, a arte —e o sorriso persistente do ponta direita do Botafogo e da seleção.

O programa traz uma citação de Carlos Drummond de Andrade que explicita os propósitos: “Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas”.

A primeira e grande estranheza de “Garrincha” é tratar-se de um musical, pode-se dizer até biográfico, como tantos que se fazem agora de estrelas da música popular. Retrata não só o jogador, mas a cantora Elza Soares.

O gênero não é novidade para o americano Wilson, embora seu teatro seja marcado por encenações formais e de efeito visual, mais para instalações do que para o romantismo feérico dos musicais da Broadway.

“Garrincha” evidencia um diretor consciente do apelo populista do gênero e que não o teme. A visão colorida que apresenta retoma o que já havia revelado em “Alice” há duas décadas, com canções de Tom Waits.

Também aquele musical tinha linha narrativa clara, baseada em Lewis Carroll. Desta vez, o fio condutor toma por base a biografia do jogador escrita por Ruy Castro. E a convivência do próprio Bob Wilson com o Brasil não é recente nem ingênua.

O primeiro espetáculo que trouxe precisou mudar de título para se apresentar no Municipal de São Paulo em 1974, na ditadura. “A Vida e a Época de Dave Clark” (no original, Stalin) influenciou, entre outros, o “Macunaíma” de Antunes Filho.

Em “Garrincha” há menções à derrota na Copa de 1950 (“O Brasil acabou de perder e você parece que nem tá se lixando”), ao AI-5, a deputados e senadores, indicando consciência do ambiente político.

Mas é um país bem diverso o que Wilson contrapõe nas pernas tortas do jogador e na voz da cantora e outras personagens, sobretudo o coro representando as filhas de Garrincha, com ritmos como samba, chorinho e hip hop.

Sob precisa direção musical de Hal Willner, a maioria das canções é dos seis músicos, em parte junto com os atores, mas também se ouvem composições de Pixinguinha a Jacob do Bandolim, este com “A Ginga do Mané”.

Entre as atrizes-cantoras, o foco inevitável é em Naruna Costa, não só pela voz bela e rouca no papel de Elza, mas pela intensidade emocional e pela ironia, por exemplo, numa cena de racismo.

Não está sozinha, nesta montagem de grandes atuações femininas —e grandes figurinos de Carlos Soto. Roberta Estrela D’Alva pontua com crítica social e rap, Carol Bezerra e Claudia Noemi não só cantam bem, mas espalham humor e petulância.

Entremeando sarcasticamente os quadros, Bete Coelho e Lígia Cortez, vestidas como pássaros tropicais, reproduzem os números de cortina da tradição musical não só brasileira, mas do teatro popular que é referência para o diretor americano.

O protagonista Jhe Oliveira enfrenta com firmeza e se sai bem na atuação mais característica do teatro de Wilson, com repetição de movimentos e gestos que espelham Garrincha —e o sorriso triunfal que é não só dele, mas marcadamente de Obama.

Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 3 de maio de 2016 com o título “Espetáculo de Bob Wilson prefere o país de sonho ao atual Brasil desesperançado”