Crítica: Cidade Vodu

Nelson de Sá

A Vila Itororó em obras, com os velhos paralelepípedos do beco no Bixiga, os casarões de paredes descascadas e pichadas, suas escadarias: o cenário poderoso, dramático, dá o impacto inicial de “Cidade Vodu”, de José Fernando de Azevedo.

Distinguem-se as colunas no fim da rua, as imagens trazidas da demolição do Teatro São José, as ruínas da história de São Paulo. Que remetem aos poucos, com o correr da apresentação, ao terremoto no Haiti em 2010, que matou perto de 200 mil pessoas.

Foi quando se deu a diáspora que acabou trazendo dezenas de milhares de haitianos ao Brasil –o país comanda desde 2004 a missão militar das Nações Unidas no Haiti, de “estabilização” institucional, a Minustah, cujos bonés azuis são representados e questionados na peça.

Contrastando com o cenário de forte impressão, o texto começa claudicante, com referências distantes, sobre relações entre brancos e negros, a opressão da escrava pelo sexo, num discurso importante mas já bastante conhecido e destrinchado.

“Cidade Vodu” vai prender mais a atenção quando a trajetória dos imigrantes haitianos, trazida pelos próprios, passa a dominar os diálogos e narrações –estas do sarcástico e inteligente Renan Tenca Trindade– e estabelece um fio narrativo mais claro.

Dá-se então a junção entre a realidade exposta nos escombros majestosos com aquela apresentada pelos próprios personagens, nos semblantes, figurinos e relatos dos cinco artistas haitianos que estão em cena.

Passa-se a tratar da realidade com grande efeito, reencenada, mas pungente. Não há nada mais característico de São Paulo hoje, não só quanto aos obstáculos enfrentados pelos haitianos na Baixada do Glicério, mas por todos os novos imigrantes espalhados na cidade.

Os nigerianos, angolanos e outros africanos, os sírios muçulmanos que fugiram da guerra civil, os bolivianos, até os chineses continentais: estão todos um pouco ali, como que simbolizados pelos haitianos, com as novas histórias de integração “cordial” brasileira, ocultando conflitos raciais e religiosos.

“Cidade Vodu” traz aproximações mais singelas, caso da sopa haitiana servida. Também o trailer de um filme dirigido por Patrick Dieudonne, cineasta que imigrou e está no elenco. Também música e dança, esta comandada por Roselaure Jeanty, atriz cativante, que era estudante de medicina até o terremoto.

Mas os conflitos vazam. Enquanto alguns espectadores tomam sopa e outros dançam ao ar livre, um ruído de caixa de som estourada perturba a Vila Itororó, com uma rádio evangélica anunciando culto. É de uma vizinha, em revolta diária contra os haitianos de “Cidade Vodu”.

Uma versão desta crítica foi publicada na edição de 20 de abril de 2016 com o título “‘Cidade Vodu’ impressiona na Vila Itororó”