Crítica: Ça Ira
Foi extraordinária a apresentação de “Ça Ira” na sexta-feira (4), o dia em que a condução coercitiva de Lula fez o país olhar para o abismo, por algum tempo. No palco como na realidade, confrontos de ideias e interesses arriscaram ir além da retórica, parte de uma crescente sedução pela violência.
Maior atração do primeiro fim de semana na MITsp, “Ça Ira” é inspirada nos fatos que precederam o Período do Terror (1793-1794) e que vão dividindo cada vez mais os Estados franceses, as classes.
O título é tirado de uma das canções mais populares da Revolução Francesa, contra a nobreza e o clero, e costuma ser traduzido como “Assim Será”. Tem versos como “Vocês pagarão com as suas cabeças” –e célebre gravação de Édith Piaf.
Embora tenha se estendido por cinco horas no Sesc Pinheiros, contados os dois intervalos, praticamente não viu redução de público. E era em grande parte uma discussão política, de questionamentos sociais e até fiscais, não muito diferentes do que se assiste agora não só aqui, mas no mundo.
A dramaturgia/encenação do francês Joël Pommerat remete ao teatro documentário, de Piscator a Boal, e até a filmes hollywoodianos como “12 Angry Men” (12 Homens e Uma Sentença) e o recente “Lincoln”, com roteiro do dramaturgo Tony Kushner.
Mas vê as partes em confronto, inclusive a monarquia, com mais distanciamento e tragicidade, aproximando-se das peças históricas de Shakespeare.
Muitas cenas se dão em assembleia, com os protagonistas distribuídos pela plateia, personagens à esquerda e à direita com traços de alguns dos líderes revolucionários franceses, mas sempre evitando vínculos claros.
Sabe-se o fim da história, e Pommerat evita retratá-lo. Concentra-se no que leva até lá: a paixão política cada vez maior e o fascínio também crescente de trocar palavras por ações –e armas.
A violência física é pouca, mas a verbal evidencia onde vai chegar. E tudo acontece com o espectador tornado, ele também, um representante na assembleia.
“Ça Ira” não impõe participação do público, mas faz com que ele se sinta parte do que é chamado, a certa altura, de maioria silenciosa. Aquela que pende para a moderação, para o centro, mas aos poucos se vê ultrapassada pelos acontecimentos, não só na assembleia, mas nas ruas, nos palácios.
É bem diverso, tanto formal como tematicamente, do outro espetáculo de Pommerat na MITsp, “Cinderela”, que é de fase anterior –e quase uma peça de sonho, de fantasia infantil, ainda que degenerada para adultos.
No esforço de aproximar a história da Revolução Francesa e a experiência moderna de democracia que ela ajudou a estabelecer, “Ça Ira” altera não só nomes, mas sexos e etnias.
Porém a diversificação mais estimulante de “Ça Ira” se dá no correr da apresentação: personagens que surgem como encarnação do que é bom aparentam depois fanatismo, para depois distanciarem-se dele e demonstrarem moderação, quando não aberta traição.
Vale para quase todos, até mesmo o rei, talvez aquele que mais evidencie que qualquer juízo é temporário, na vaga revolucionária: estão à mercê das circunstâncias, sobre as quais sua influência é cada vez menor.
Nas apresentações de 2015, o título completo era “Ça Ira (1) Fin de Louis”, o fim do rei. A eventual segunda parte, se houver, promete sangue.
Uma versão desta crítica aparece na edição de 7 de março de 2016 (para assinantes) com o título “‘Ça Ira’ esclarece conflitos das democracias contemporâneas”