Crítica: Estúpido Cupido
Françoise Forton não desafina e leva com segurança, apesar da pouca voz, “Estou Aqui”, a versão de Flávio Marinho para “I’m Still Here”. “Standard” do teatro americano contemporâneo, a canção fecha “Estúpido Cupido” e dá alguma dramaticidade a um musical de resto leve demais.
A versão poderia ser ela própria mais amarga ao tratar das derrotas e da sobrevivência de uma atriz, como no original de Sondheim, mas tem o bastante para confirmar que Forton pode ir além de Tetê, o seu açucarado personagem na novela de 1976 e agora no musical.
Fora essa e alguma outra exceção, a trilha de “Estúpido Cupido” amontoa versões de composições pueris da virada dos anos 1950 para os 60, como a canção-título e “Banho de Lua”. Eram cantadas à época por Celly Campello, cópia local da americana Connie Francis e da italiana Mina —que cantavam os originais.
O problema está menos nesses hits sofríveis que dominam a apresentação do que na capacidade do elenco protagonista de acreditar neles. O arrebatamento romântico nas situações mais inverossímeis é próprio dos atores de musicais, mas nenhum dos principais é do gênero.
Uma das melhores interpretações é de “Filme Triste”. É descaradamente simplória: namorado de garota diz que vai estudar, mas ela o enconta no cinema aos beijos com outra e fica triste.
A atriz que faz Tetê jovem, Luísa Viotti, canta com tamanha convicção que o público se deixa levar, apesar da letra inverossímil. O mesmo vale para a atriz que faz Wanda jovem, sua rival, com envolvente sorriso malicioso e voz poderosa ao longo de todo o espetáculo, Ryene Chermont.
Não que Forton e Sheila Matos, como Tetê e Wanda hoje, não tragam convicção e potência para os papéis, mas Viotti e Chermont são de uma geração já formada por e para musicais. Não só preparadas tecnicamente, mas capazes de embarcar naquelas fantasias juvenis.
Em tempo: na trama, duas amigas fazem uma festa para reunir a turma de escola, enquanto ressurgem paralelamente cenas da época, com flertes, amigos etc.
Clarice Derzié Luz, que faz a amiga de Tetê hoje, se deixa embarcar também, mas pela via do humor, nem tanto pela música. É comediante experiente, que expõe a si mesma e aos demais e quebra o bom-mocismo da cena, explorando a comédia leve, engraçada, de Marinho.
Isso, até a peça se perder na rendição à celebridade. Originada de uma telenovela, essa rendição vaza por todo lado, até mesmo na versão para “Estou Aqui”. Mas o momento em que abala Derzié e quase todo o andamento da apresentação é quando entra Luciano Szafir.
O texto brinca que seu personagem gostaria de ser ator, aparente referência ao próprio, mas o obstáculo que impõe é incontornável. O que retrata —e expressa abertamente— é um desejo de celebridade, não de interpretação ou arte. A partir daí, não há o que salve “Estúpido Cupido”.
O humor de Derzié, o romantismo de Forton, o tema da peça, tudo é degradado. E tudo leva a crer que esse apelo à subcelebridade era desnecessário, ao menos em São Paulo. A plateia do Teatro Gazeta é formada por senhoras que saíam da adolescência nos anos 1950, que estão ali pelas canções, pelas saudades.
Uma versão desta crítica aparece na edição de 1º de março de 2016 (para assinantes) com o título “‘Estúpido Cupido’ é alegre e leve até se render à celebridade”