Crítica: Pessoas Sublimes
O novo espetáculo do grupo Os Satyros é muito diferente do anterior “Pessoas Perfeitas”, mas não na estrutura. São também personagens tiradas da realidade, que ganham aos poucos contornos singulares e enternecedores pelas mãos dos dramaturgos Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, os “sátiros” originais, que deram nome à companhia e são também ator e diretor, respectivamente.
Como na primeira peça, do que promete agora ser uma trilogia, ambos demonstram perspicácia e talento para reconhecer e montar narrativas de figuras da cidade –que, ao longo da apresentação, parecem estar saindo da memória do próprio espectador.
A diferença maior é que não se trata mais de uma encenação algo realista, até de crítica social. Esta é fantástica, “sublime”, como adianta o nome. Mal se pode afirmar que seja mesmo de São Paulo. O bairro seria Parelheiros, já meio rural, com mato e represa. Nada de opressão urbana, sequer de pobreza. Agora são seres isolados, com dramas e tragédias individuais.
O grupo já fez trabalho semelhante na tocante “A Fauna”, encenada como procissão nas ruas e casas do bairro periférico de Vila Verde, em Curitiba, parando para personagens locais –elas mesmas, não representadas por atores. Era também um universo todo próprio, à parte, como agora. E eram também figuras fantásticas, em relatos de sonho, embora fossem a realidade, apenas emoldurada por Cabral e Vázquez.
As pessoas sublimes da nova peça, como as de “A Fauna”, se permitem devaneios e esperanças, mas se mostram redondas como personagens nas duas horas de espetáculo.
Todas o fazem, em certa medida, mas algumas emocionam mais, caso da desmemoriada e frágil Sonata de Fernanda D’Umbra, atriz que reafirma sua capacidade para prender os sentidos do público, com a concentração e a consistência na representação, a voz estrondosa.
Também a Delírio de Helena Ignez, mas em outra direção: é como se ela se deixasse levar, com o público, pelas fantasias mais banais, triviais –até que revela ser, de fato, a chave do quebra-cabeças narrativo de “Pessoas Sublimes”. A qualidade na interpretação é bastante uniforme, na verdade.
Os autores deixam brilhar cada um dos papéis e seus atores, ainda que nem tudo tenha se mostrado perfeito quanto à cadência, na apresentação de estreia.
Há um certo desejo de imperfeição, uma crueza própria do Satyros, também na cenografia, nos figurinos, na maquiagem de barroco grotesco. Mas, mesmo quando o ritmo se perde e sobressaem imperfeições, ele não demora a retornar embalado nostalgicamente pelas canções da trilha, que também parecem estar saindo, aliás, da memória do espectador.
Uma versão desta crítica aparece na edição de 19 de fevereiro de 2016 (para assinantes) com o título “Satyros demonstram perspicácia e talento em narrativa sobre SP”