Crítica: Navalha na Carne

Nelson de Sá

Protagonista e codiretor de parte das montagens do Oficina, Marcelo Drummond percorre trilha paralela no grupo junto à dos grandes espetáculos de Zé Celso. Encena textos menores, de autores como José Vicente ou o poeta Roberto Piva, com tipos urbanos, em pequenos apartamentos ou nas ruas de São Paulo.

Personagens que muitas vezes, como faz a prostituta Neusa Sueli em “Navalha na Carne”, de Plínio Marcos, se perguntam se são “gente”.

É a segunda peça que dirige do dramaturgo, desta vez sua obra-prima de 1967, que confirmou historicamente a atriz por trás da beleza de Tônia Carrero. O que traz para o texto, como anteriormente, é uma dessacralização, que o atualiza —e também questiona, em parte, o carimbo naturalista.

É encenado no final da “pista” do Oficina, com uma “arquitetura cênica” de Carila Matzenbacher e Marília Gallmeister que remete as escadas, entradas e saídas do teatro a um cortiço ou prostíbulo. Também os figurinos de Vera Valdez para a prostituta, o cafetão Vado e o faxineiro homossexual Veludo são singulares, com cada peça servindo a um propósito, um significado, com rigor.

Cenário e figurino se somam às respectivas atuações de Sylvia Prado, do próprio diretor e de Tony Reis para escapar do naturalismo e, por outro lado, da costumeira interpretação “épica” do Oficina. As encenações de Drummond têm servido também para isso: atores do Oficina, sem perder inteiramente a comunicação direta com a plateia, exercitam-se em espaço e volume menor.

No caso, explorando a riqueza dos diálogos de Plínio, o humor vem à tona, quebra e ao mesmo tempo acentua o drama, fazendo rir na mesma cena em que emociona.

Para isso, conta com aquele que é talvez o personagem mais emblemático do dramaturgo e com uma intérprete hoje experiente em todas as frentes essenciais para uma atriz, Sylvia Prado. Sua Neusa Sueli vai da insolência à fragilidade, da força à desesperança, seu corpo é por vezes exuberante ou maltratado.

Com mudanças de humor, seduz e logo depois repugna. Sua concentração é constante e prende a atenção do espectador até quando um bebê chora na plateia —o que se tornou comum, entre espectadores que parecem ver o Oficina como comunidade.

Na mesma linha, mas com menos presença, Tony Reis faz um Veludo que, embora tantas vezes frágil, deixa a sensação de poder abater quem quiser, em músculos e sagacidade.

Montada originalmente como evento, num ciclo sobre o dramaturgo, esta “Navalha na Carne” tem seus limites, como a violência de coreografia pouco convincente —que oculta a tortura, tão significativa quando foi escrita. Mas é chance de ver um dos clássicos modernos do teatro brasileiro, na íntegra e com rigor.

Uma versão desta crítica aparece na edição de 8 de janeiro de 2016 (para assinantes) com o título “‘Navalha na Carne’ do Oficina é chance de ver clássico com rigor”