Marília Pêra, clássica e “girl”

Nelson de Sá

“Vivi de arte, vivi de amor/ Nunca fiz mal a nenhuma criatura viva.”

Os versos são da ópera “Tosca”, de Puccini, e foram lembrados por Marília Pêra ao escolher o título de sua autobiografia, “Vissi D’Arte” (Escrituras, 1999, 400 págs.).

Nela, além da história pessoal, a atriz contava a própria história da interpretação no Brasil, através das famílias teatrais de seu pai, Manuel Pêra, português de atuação descrita como mais clássica, e de sua mãe, Dinorah Marzullo, que havia começado como “girl”, corista, no teatro de revista.

Cômica e musical, Dinorah era também “louca” como Marília, na descrição do dramaturgo Flavio de Souza, que co-escreveu “Vissi D’Arte”.

A atriz cresceu nas coxias e carregou as qualidades herdadas por quase sete décadas. Nas palavras da própria, em “Cartas a uma Jovem Atriz” (Campus-Elsevier, 2008, 208 págs.):

“Essa diferença entre meu pai e minha mãe -ele, sério, meio mal-humorado, e ela, brejeira, jovem, comunicativa- tinha alguma semelhança, em meu universo emocional, com as máscaras da tragédia e da comédia”.

Marília era clássica e corista. Recebeu prêmios de melhor atriz em São Paulo e até Nova York, mas antes também foi “girl” na praça Tiradentes, no Rio, e até no circo Tihany.

Seus grandes mestres haviam sido o pai, a francesa Henriette Morineau, na companhia de quem fez a estreia ainda criança, em “Medeia”, de Eurípides, e a brasileira Dulcina de Moraes.

Mas a comparação mais direta era sempre com Cacilda Becker, que morreu em 1969, ano em que Marília acumulou prêmios de melhor atriz pela Mariazinha de “Fala Baixo Senão Eu Grito”, de Leilah Assumpção.

Esta e Dona Margarida, de “Apareceu a Margarida”, de Roberto Athayde, em 1973, firmaram então a nova primeira atriz, herdeira direta. Corre a lenda teatral que Marília estava na plateia da última apresentação de Cacilda e, quando esta saiu carregada pelo corredor após entrar em coma, foi tocada por ela.

Apesar das grandes atuações no teatro dito sério ou sem música, tanto em drama como comédia, foi no teatro musical que a atriz deixou a maior marca. Começando por um acontecimento histórico, em 1968, quando grupos de extrema direita atacaram os atores de “Roda Viva”.

Da atriz, em sua autobiografia, ela que pouco falava do episódio: “Entraram quebrando os espelhos, arrancaram minha roupa, deram socos. Saí correndo, me desviando de socos. No corredor havia mais rapazes, e enquanto fugia eu sentia cassetetes nas costas”.

Já havia atuado antes em “Minha Querida Lady”, adaptação da Broadway, ao lado de Bibi Ferreira, e “A Ópera dos Três Vinténs”, de Brecht, e atuaria depois em vários musicais americanos célebres, como “Pippin” e mais recentemente “Alô, Dolly”, ao lado de Miguel Falabella.

Neste último, nas temporadas de 2012 e 2013, sua interpretação reafirmou a divisão precisa entre comédia e drama, entre ironia e sobretudo fragilidade, características dela própria e da personagem. Fazia acreditar que, como Dolly, sabia o que é fome e pobreza.

Pouco antes, em “Gloriosa”, de 2009, Marília, cuja formação original era de bailarina, brincava consigo mesma ao fazer uma intérprete que supostamente não sabia cantar.

Antes ainda, em 1996, ensinava exuberantemente não só canto, mas interpretação em “Master Class”, abordando “arte” e “verdade”, num espetáculo que tornou Marília Pêra, de uma vez por todas, “diva”.

Um dos muitos ensinamentos que ela deixou, este de “Cartas a uma Jovem Atriz”:

“Desde que tive alguma consciência das coisas, acreditei que uma atriz verdadeira pudesse dar conta de todos os tipos de personagens, do trágico ao cômico, do musical à chanchada”.

Paralelamente ao teatro, Marília manteve carreira tanto no cinema como na televisão. Nesta última, já era protagonista na Globo no início dos anos 1960 e logo depois estava presente no auge das telenovelas no país, com “Beto Rockfeller”, em 1968, na Tupy.

Voltou para não mais deixar a Globo até os seriados cômicos recentes, com Falabella -apesar dos conflitos, pouco aprofundados em entrevistas e livros, que acumulou com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que foi um dos principais executivos da emissora.

Mas o seu lugar era o palco, dizia que “o teatro é como se fosse a minha casa” e tratava de levar para os outros ambientes o que havia conhecido por lá.

Foi o caso de um de seus personagens mais populares, Rafaela Alvaray, da novela “Brega e Chique”, de 1987, todo baseado em Dulcina, todo teatro.

Uma versão deste necrológio aparece na edição de 6 de dezembro de 2015 (para assinantes) com o título “Vítima de câncer, Marília Pêra morre aos 72, no Rio”