Filoctetes
O teatro da Cia. Razões Inversas atravessou os últimos 25 anos –ou 40, se contados desde a primeira montagem do diretor Marcio Aurélio– contra a corrente. A nova encenação, “Filoctetes”, não é exceção.
Ao longo desse tempo, na cena brasileira menos comercial, o predomínio foi de um teatro em que o espetáculo se sobrepôs ao texto. Enquanto isso, Aurélio, aliás biblioteconomista por formação, parecia vasculhar bibliotecas atrás das grandes peças, aquelas que o público brasileiro desconhece ou pouco viu.
Foram encenações densas como “Ricardo 2º”, de Shakespeare, “A Bilha Quebrada”, de Heinrich von Kleist, ou ainda, numa incursão em que afirmou a qualidade da dramaturgia brasileira contemporânea, “Agreste”, de Newton Moreno.
Agora, como antes, o tratamento buscado em “Filoctetes”, mais um texto de Heiner Müller em sua longa lista, é muito próximo da oratória. E novamente sem afetar teatro político, sem referências tópicas, faz uma crítica profunda à democracia brasileira pós-ditadura militar.
O anti-herói aqui é Odisseu, que com um sorriso de ironia e aberto oportunismo enreda os idealistas e já anteriormente defraudados Filoctetes e Neoptólemo –este filho de Aquiles– a fazer o que quer.
É uma peça do período em que Müller (1929-95) explorou a forma didática do antecessor Bertolt Brecht –outro autor e teórico essencial para Aurélio– mas era também o seu oposto, rompendo os resquícios de credulidade do público com a Alemanha socialista.
Como visto em outras montagens do diretor, “Filoctetes” chega a recorrer a um microfone, ostensivamente postado na boca de cena, para romper qualquer ilusão realista com a trama e, talvez, para sublinhar tratar-se de retórica.
Ator saído da própria Razões Inversas, Marcelo Lazzaratto é quem se dá melhor, quem está mais à vontade com texto e direção, certamente ajudado por seu personagem, um pragmático, quase sarcástico, Odisseu.
Na forma aparentemente estática e verborrágica de Aurélio, é nessas maquinações de raciocínio, de pensamento tão bem representadas por Lazzaratto que se descortina um grande teatro.
Uma versão desta crítica aparece na edição de 3 de outubro de 2015 com o título “Razões Inversas valoriza texto e descortina um grande teatro”