O Camareiro

Nelson de Sá

Tarcísio Meira é escolha inusitada para fazer o “Sir” de “O Camareiro”, peça de Ronald Harwood que se firmou como um dos melhores retratos do palco londrino, de seus bastidores e conflitos.

O personagem é um ator consagrado de teatro, cavaleiro do reino, de grandes interpretações shakespearianas como Otelo e, na trama da peça, Lear. Não é o caso de Tarcísio, apesar das dezenas de peças em que já atuou.

É um ator de televisão, mais até, é a própria incorporação do ator de telenovela, uma instituição nacional —ele que já estava lá, protagonista do primeiro folhetim diário brasileiro, “2-5499 Ocupado”, de 1963, junto com a mulher, Glória Menezes.

É quase inverossimilhante fazê-lo passar pelos desesperos do ator diante do público de teatro, sustentado e instigado por seu camareiro. Mas, com tudo contra, é ele o coração do espetáculo.

É em torno dele que tudo roda, de sua presença e angústia, até da inesperada força para sair da letargia, da prostração do ator à beira da morte, para um interesse súbito e faceiro por uma atriz muito mais jovem.

Mais importante: sua força para finalmente entrar em cena, na peça dentro da peça, e ostentar a voz estrondosa do rei. O cineasta —e ator shakespeariano— Orson Welles dizia não ser bom ator, mas um bom ator-rei, velha classificação dos elencos de teatro. Tarcísio Meira, ele também, nasceu para ser rei.

Não é um ator de teatro tão constante quanto o personagem, há duas décadas não subia ao palco, mas sua interpretação é entusiasmante.

A encenação de Ulysses Cruz é bem elaborada e, ela própria, uma celebração do teatro. O diretor, a exemplo do colega de geração Gabriel Villela em “A Tempestade”, de tema próximo, se mostra seguro, amadurecido, com um olhar terno sobre o ofício teatral que se percebe nos movimentos dos atores, nos detalhes dos cenários.

É uma grande homenagem de Cruz e de seus parceiros de cenografia, André Cortez, de iluminação, Domingos Quintiliano, também de figurino e visagismo, aos atores.

No elenco, essa aceitação e saudação do teatro como ele é, com suas atitudes ridículas e paixões eternas, grandes sacrifícios e maiores mesquinharias, também está presente —como galharufas, por assim dizer, a expressão usada no teatro para os mecanismos e pequenas mensagens, segredos, que os velhos atores deixam aos mais novos.

Em alguns intérpretes, como Karin Rodrigues, no papel da diretora de cena, percebe-se na própria postura física esse retrato das coxias, do que têm de exasperante e também de persistente.

Por outro lado, Kiko Mascarenhas, no papel do camareiro, se excede nos trejeitos, levando o texto para uma comédia mais popularesca. Idealizador do projeto, é quem mais o desperdiça.

Não precisaria ser um Ian McKellen, o célebre ator inglês que interpreta o camareiro na nova versão da peça para cinema, que será lançada até o fim do ano, mas certamente poderia explorar melhor as deixas cômicas, que resultam quase todas em suas mãos.

Uma versão desta crítica aparece na edição de 11 de setembro de 2015 com o título “Tarcísio Meira é o coração de ‘O Camareiro’”