Deixa Eu te Contar
É uma febre que remete, em mais de um sentido, ao fenômeno dos filmes “Pitch Perfect” (“A Escolha Perfeita”), a começar do público. A plateia do Teatro Gazeta é tomada por adolescentes e jovens adultas, quase todas meninas, algumas acompanhadas de uns poucos e constrangidos meninos.
Antes, elas se amontoam no saguão, aos gritos, correndo em bando quando veem uma das atrizes chegando, escondida pelos cantos. Ao entrarem, como num show ou jogo de futebol, passam por revista. São vários seguranças, grandes, que depois ocupam as pontas do palco para evitar invasões.
Mas o maior paralelo com “Pitch Perfect”, a série de comédias despretensiosas sobre um coral de estudantes, é tratar-se do que a atriz Anna Kendrick –a protagonista dos filmes– chama de “vagina jokes”, piadas de vagina. Um humor escatológico, carregado de palavrões, de vestiário, antes restrito, no cinema como no teatro, aos meninos.
O autor de “Deixa Eu te Contar” é Afonso Padilha, roteirista do Porta dos Fundos, o maior canal brasileiro de vídeos on-line, mas é evidente que a peça recebe acréscimo constante de texto pelas atrizes. Kéfera Buchmann é o principal chamariz, ela que responde pelo quarto canal do país, 5incominutos.
É também quem garante autenticidade ao que é tratado ali –comentários desabusados sobre o cotidiano de duas BFF (“best friends forever”, melhores amigas para sempre), de depilação ao relato de um pedido de namoro, cuja narração é o fio que mantém a história minimamente de pé.
O humor é instigado sobretudo pela outra metade da dupla, Bruna Louise, mais propriamente comediante. Kéfera e Bruna se desenvolveram como atrizes, inclusive dramáticas, em Curitiba, com presença constante no festival. Com o tempo, a segunda se firmou como “stand up”, inclusive em vídeos.
Além das duas, participa de uma das esquetes entremeadas à narrativa o “personal trainer” de Kéfera, ele também “vlogger” conhecido, Danilo França, cujos músculos e grunhidos são o pouco que se permite de masculino no palco –e somente para fazer piadas sobre os seus seios e rude virilidade.
Reunindo celebridades on-line, é uma peça com muita referência ao ambiente digital, dos smartphones às ferramentas mais recentes, como Periscope. Tecnologia que contrasta com cenário e figurinos, pobres em custo e imaginação, e com os equipamentos cênicos do Gazeta, paupérrimos, até perigosos.
Com texto irregular como um vídeo de YouTube, depende quase que exclusivamente da comicidade, da espontaneidade nem sempre convincente e do fascínio de internet das atrizes. É o que basta para seu público, que está ali para ver, fotografar com celular e quem sabe tocar nos ídolos, sobretudo Kéfera.
Duas semanas atrás, em texto sobre a chegada de “vloggers” como a dupla Smosh às grandes produções hollywoodianas, o “New York Times” perguntou, “Será que milhões de fãs no YouTube podem tornar um filme um sucesso?”. No teatro, a resposta já foi dada.
Uma versão desta crítica aparece na edição de 10 de julho de 2015 com o título “Estrelas da internet e piadas de vagina levam meninas ao delírio”
Leia também a reportagem “Kéfera Buchmann e outros fenômenos do YouTube são disputados por gigantes da web”