Sergio de Carvalho e o musical político
Dias atrás, publiquei uma reportagem sobre três novos livros que retratam o teatro musical e político no Brasil, entre eles a edição de “Ópera dos Vivos” pela Outras Expressões. A obra está sendo lançada nesta quarta 18, a partir das 20h, no bar Conceição Discos e Comes (r. Imaculada Conceição, 151, Santa Cecília, centro de São Paulo).
Abaixo, Sergio de Carvalho, diretor da Companhia do Latão, fala sobre o gênero e a peça:
Tradição – Em escala europeia, a associação entre teatro musicado e manifestação política mais ou menos direta, de temas políticos, é muito antiga. No século 19, você tinha várias frentes, por exemplo, o cabaré político que vem já como uma linha francesa forte, no período posterior à Comuna de Paris. A região de Montmartre desenvolve uma estrutura de cabaré político. O cabaré alemão do fim do século 19, de cuja tradição o Karl Valentin vai ser herdeiro, também é um gênero de teatro musicado. Num sentido amplo, a tradição do teatro de revista já se politiza ao longo do século 19. Quando Piscator resolve fazer uma revista comunista, está só atualizando uma tradição. Quando Brecht dialoga com Karl Valentin e com as possibilidades da música para o teatro épico, também está dialogando com uma tradição. Na União Soviética, isso se desenvolveu muito. O teatro de agitprop era musicado. O Camisas Azuis e depois o Megafone Vermelho são grupos musicais de teatro de agitação e propaganda. É uma tradição muito grande.
Ronda dos Malandros – A ópera do John Gay do século 18 já era uma peça política [“The Beggar’s Opera”]. Ele botou um assunto rebaixado na estrutura da ópera. O Brecht, quando pega e resolve fazer no campo do teatro comercial, sublinha esse jogo formal que estava no original –e, na minha opinião, inclui ainda uma sátira à indústria cultural, no nascimento dela, como tema de fundo da “Ópera dos Três Vinténs”. O Ruggero [Jacobbi], por não poder montar Brecht diretamente em função do ambiente do TBC, faz uma mistura das duas, cria um terceiro texto, quase um manifesto [“Ronda dos Malandros”, em 1950, logo tirada de cartaz]. Mas você vê a história sempre polêmica em torno disso. O fato objetivo é que foi censura dos amigos do Zampari [fundador do TBC], dos amigos dele, segundo depoimento que o Ruggero deu depois na Itália.
PCB – [Ruggero sai do TBC e] pauta, organiza o Teatro Paulista do Estudante. Na verdade, o Teatro do Estudante foi uma tarefa dada pelo Partido Comunista para a juventude, para dois dos filhos de gente muito famosa ligada às artes, porque o pai do Guarnieri era maestro e o Oduvaldo Vianna era um dramaturgo conhecido e também da Rádio Nacional. O Guarnieri e o Vianinha tomam a frente e procuram o Ruggero. E o Ruggero é que organiza, dá pauta, põe a questão do teatro popular para eles. Depois, quando eles arrumam espaço no Arena para ensaiar, ocorre a incorporação do elenco. Primeiro é uma cessão de espaço, depois uma incorporação no Arena, depois eles entram de fato e realinham o Arena, redirecionam. O Ruggero está por trás de tudo. A vinda do Fernando Peixoto para o Oficina é via Ruggero. O Gerd Bornheim foi aluno do Ruggero. É muita gente.
Pós-64 – O teatro musicado, como gênero político nos anos 60, tenta criar um padrão, sistematizar. É pós-golpe, então ele decorre do fracasso, do massacre do CPC [Centro Popular de Cultura da UNE]. É a geração do CPC que funda o show Opinião, que vai ser o show mais simbólico do período. É João das Neves, Ferreira Gullar, Vianinha –e o Boal se reúne a eles, para dirigir. É a possibilidade do político já nas condições do corte com o movimento social. É a expressão de uma derrota, num certo sentido, e a possibilidade de atuar dentro das condições dadas ali, pós-64. Foi um gênero forte entre 1964 e 68. Quando ele tenta sobreviver nos anos 70, a censura de “Calabar”, para mim, é a pá de cal [em 1974]. Quando “Calabar” não estreia, acabou. “Gota D’Água” ainda é um respiro, mas você vê que já era menos explosivo que “Calabar”. Não deixava o tema tão manifesto, com sua levada clássica, com a própria Bibi no centro da coisa. É um período muito interessante.
Modernização popular – [Na história do teatro brasileiro, só se admitiu] um tipo de modernização, no modelo Copeau. A modernização em linha popular, interessada no nacional popular, era problemática. Era política. Para mim, nem todos os caras que representam essa modernização de base popular são comunistas, às vezes são só de coração socialista: Hermilo Borba Filho, em Pernambuco, pensou essa junção; o Martim Gonçalves, que era quase um aristocrata, fundou a escola de teatro da Bahia, era um espírito meio antiburguês e foi proscrito ali; o Ruggero, especialmente; o Oswald, quando vai para a esquerda também. Teve um texto no começo dos anos 30, “O Andaime”, do Paulo Torres, que causou burburinho. Era uma peça politizada também. Quando isso é retomado nos anos 60, já é outro momento, já está imposta na crítica uma outra linha de modernismo. Mesmo o reconhecimento do Arena é relativo, é via dramaturgia, uma ideia de dramaturgia canônica, criando uma neutralização da dialética.
Ópera dos Vivos – No Latão, a questão musical é central. O Martin [Eikmeier], para mim, é um dos grandes músicos do teatro brasileiro, da história. Muitas das peças recentes do Latão, como a “Ópera dos Vivos”, são de estrutura musical. Agora, não existe um enquadramento. Ao contrário, a gente sempre procura tirar uma forma de reconhecimento dominante, porque o próprio enquadramento “teatro político” sugere um nicho, hoje um nicho já de mercado, paralelo –o que eu acho repulsivo. A força do Latão, para mim, foi ter rompido, misturado público. Nas nossas plateias, tem gente de lugares diferentes, o que para mim é resultado da própria diversidade formal. Então, a questão musical não pode ser vista como enquadramento, mas ela é constitutiva, no Latão. Ela é dramaturgia. Dramaturgia, também, pelo fato de o Latão trabalhar com funções muito variadas da música. Raramente ela vem para encantar, sublinhar atmosfera. É sempre na contramão disso, como acho que é a grande tradição no musical político. Pega o grande musical político americano dos anos 40, tipo Marc Blitzstein, eles são muito especiais. É um uso muito variado da música.