Caixa mágica prende o teatro em “Jogos de Cartas”

Nelson de Sá

Aos 56, Robert Lepage continua mágico, mais até do que antes. O palco de arena que ele construiu para as quatro peças do ciclo “Jogos de Cartas”, com o cenógrafo Jean Hazel, é uma caixa de magia.

Personagens, objetos de cena e cenários inteiros sobem e descem no círculo diante dos espectadores, num redemoinho de efeitos especiais. Não faltam nem telas de televisão, que se escondem no alto –ironicamente, em se tratando de Lepage– e surgem para intervenções com a falsa “realidade” da guerra do Iraque.

A guerra, na primeira peça da tetralogia, “Espadas“, que faz nesta quarta sua última apresentação no Sesc Santo Amaro, é na verdade uma referência distante: trata-se de um espetáculo sobre Las Vegas, a capital do jogo.

Em particular, sobre cinco personagens de um hotel da cidade: o executivo de televisão viciado em jogo, a camareira imigrante “ilegal” que não tem acesso a tratamento de saúde, o soldado estrangeiro em treinamento –e em crise– num quartel próximo a Las Vegas e dois jovens canadenses que foram até lá se casar.

Lepage morou durante meses num hotel de Las Vegas, quando dirigiu um show do Cirque du Soleil, no momento em que os Estados Unidos invadiam o Iraque. Embora escritos de forma “coletiva”, as tramas e os personagens parecem todos saídos diretamente das impressões do autor-diretor.

Nem são personagens, mas caricaturas pouco reveladoras em narrativas desconexas. Até as suas mortes, inclusive dois suicídios, soam gratuitas, inexplicáveis. O que não quer dizer que não sejam belíssimas.

Por exemplo, o executivo, pressionado por dívidas, se joga pelo deserto do Arizona. Já aparentemente morto, sobe aos céus levado por um furacão de areia.

É o truque mais arrebatador da caixa de magia, mas quase injustificável, por mais que se busquem deixas nas duas horas e meia da apresentação –e que este seja o papel mais desenvolvido e bem representado do espetáculo, pelo irlandês Tony Guilfoyle.

Quando o diretor canadense assombrou o teatro mundial, mais de duas décadas atrás, não foi pelos efeitos especiais. Ou, melhor, foi porque ele conseguia reunir perfeitamente fábulas e efeitos, texto e imagem, quase como brincadeira, daí as comparações com o diretor inglês Peter Brook.

A brincadeira não impedia então que os temas fossem aprofundados, como no arrebatador “Needles and Opium”, sobre arte e drogas, primeiro espetáculo seu no Brasil. Outra criação de mais equilíbrio foi “The Far Side of the Moon”, também apresentada aqui.

“Jogos de Cartas: Espadas”, por outro lado, parece mais um espetáculo de magia de Las Vegas ou do próprio Cirque du Soleil –e leva muitas vezes o espectador ao tédio, o maior demônio do teatro, no dizer de Peter Brook.

Em vez de abrir e tornar mais acessível o mundo de Robert Lepage, o teatro de arena terminou por encerrá-lo, prendê-lo na caixa. É difícil imaginar que ele chegue ao fim da tetralogia sem explodi-la.

Uma versão desta crítica foi publicada aqui, sob o título “Excesso de caricatura sufoca espetáculo de Lepage”. Leia uma primeira entrevista com o diretor canadense em 1992, quando ele se tornava conhecido mundo afora, e uma nova entrevista agora. Também uma crítica de “Needles and Opium“, que estabeleceu seu prestígio como encenador.