“Caros Ouvintes” dá vida aos personagens esquecidos da “era do rádio”
Na edição de hoje, eu e Lenise Pinheiro procuramos retratar como as parcerias teatrais estimulam e sustentam a produção, tanto quanto ou até mais do que os grupos e o financiamento institucional. Um dos exemplos é a dupla de Otávio Martins e Ed Júlio, que em apenas seis anos já ergueu 13 espetáculos em São Paulo.
O mais recente é “Caros Ouvintes“, escrito e dirigido pelo primeiro, produzido pelo segundo. A peça procura costurar o fim da radionovela com a ascensão da ditadura civil-militar e da telenovela, no fim dos anos 1960, num paralelo à primeira vista não muito convicente, mas que se revela afinal bastante adequado.
Por exemplo, como me apontou Martins, o personagem Péricles Gonçalves não é inspirado só caricaturalmente em Ivon Cury (1928-95) e sua peruca, mas no que ele viveu quando a ditadura passou a intervir na rádio Nacional, a principal fonte de entretenimento e jornalismo até o domínio da televisão.
O próprio episódio da revolta da rua Maria Antônia e seu impacto na equipe da telenovela, que poderia soar inverossímil, é baseado em fato vivenciado na rádio Capital. De todo modo, o autor trata de registrar no programa da peça que aprendeu, a certa altura, que tinha que se livrar das amarras documentais que o prendiam:
“Estava muito preocupado em encaixar o modus operandi da rádio e os fatos históricos da época, o que estava me impedindo de seguir em frente. Foi quando a voz libertadora de Noemi Marinho [também dramaturga] me disse para deixar isso de lado e me preocupar em contar as histórias daqueles personagens.”
Assim, os personagens da decadente “era do rádio”, que no Brasil foi até os anos 1950, são um deleite para intérpretes como Eduardo Semerjian, que faz Péricles, o galã envelhecido de peruca; Agnes Zuliani, como Ermelinda Penteado, uma velha e reacionária radioatriz; e Alex Gruli, que faz o sonoplasta Eurico.
São papéis quase tragicômicos, que transmitem bem o saudosismo que o texto propõe –e que o elenco de maneira geral incorpora. A trilha e as canções, estas interpretadas ao vivo por Amanda Costa, vão pela mesma linha. Em momentos, “Caros Ouvintes” mais parece um musical –e só teria a ganhar se o acentuasse.
A identificação do público é ampla e não só dos que viveram a época, no auditório lotado do Masp. Como já se observa também nos musicais propriamente ditos, temas locais já passam a ter maior resposta por parte da audiência, no Brasil.
Uma versão desta crítica foi publicada aqui.