Nem Dafoe nem Baryshnikov: o russo Daniil Kharms purifica o mundo
“The Old Woman”, a velha, acaba de fazer sua última apresentação no Brasil, no Rio, e agora viaja à Argentina. Vista em São Paulo há duas semanas, é uma encenação que o diretor americano Bob Wilson se esforça em garantir que não representa nada. Que não tem significado, não tem moral da história. Que não busca dizer coisa alguma.
Diz Wilson que a novela russa (na verdade, mais para um conto) em que se inspirou, indicada por um assistente, foi escolhida sem que ele também a compreendesse. Mas não foi por nada que a fez.
Publicado em coletânea há cinco anos nos Estados Unidos, reapresentado assim ao Ocidente, o poeta, prosador e dramaturgo russo Daniil Kharms (1905-42) tem uma linguagem que o aproxima de Beckett, Ionesco, do chamado teatro do absurdo. E que obviamente carrega nexo estético com aquilo que o próprio Bob Wilson faz.
Assim é que, no palco, surgem dois atores na clássica dupla do vaudeville, do cabaret, do cinema mudo. Espetáculo e sua inspiração são surrealistas, da maquiagem carregada à iluminação.
O bailarino Mikhail Baryshnikov fala russo no palco, dá alguns passos e, no mais das vezes, faz a parte do “straight man”. O humor propriamente fica por conta de Willem Dafoe, mais à vontade com o teatro formalista de Bob Wilson. É uma interpretação irônica que ele domina por completo _a exemplo de Bete Coelho, aliás.
Como encenação, é mais do mesmo que vem sendo visto no Sesc nestes últimos anos, de Wilson. Mas é um “teaser” que leva à descoberta de Kharms em português. Há poucos anos, peças suas ganharam montagens no Brasil, até dos Parlapatões. Mas é difícil imaginar apresentação melhor que a coletânea da ed. Kalinka.
Com quase 300 págsinas e muito semelhante à coletânea americana, “Os Sonhos Teus Vão Acabar Contigo” saiu no final do ano passado e reúne não só “A Velha”, que inspirou a peça de Wilson, mas “causos” (“incidents”, na versão para o inglês), uma de suas peças, um manifesto, poemas para crianças, textos de apoio.
Khams antecipa o nonsense de Kafka, Beckett e Wilson, mas é sobretudo mais engraçado, a cada frase. Dafoe ecoa um pouco dele na peça, mas todo pequeno texto da coletânea, toda cena da novela denuncia uma graça que seus posteriores não conseguem emular. E isso em meio a censura, exílio, suicídios, às prisões stalinistas.
Noutras palavras, Khams representa muito _e as mesmices de Bob Wilson, dizendo que não é para entender o escritor-protagonista de “The Old Woman”, soam paternalistas e até ofensivas.
A breve introdução da Kalinka, de Daniela e Moissei Mountian, anota que “o nonsense que empregava em seus textos, partindo das situações mais esdrúxulas do cotidiano, era uma forma de purificar o mundo, de desnudar o real… Khams teria muito ainda a desconstruir não fosse o tombo que a vida o fez tomar aos 37 anos”.
Por falar em tombo, um dos “causos” de “Os Sonhos Teus Vão Acabar Contigo”:
“Púchkin e Gógol”
Gógol (despenca da coxia e fica deitado no palco sem se mexer).
Púchkin (aparece, tropeça em Gógol e leva um tombo): Diabo! Parece que tropecei em Gógol!
Gógol (erguendo-se): Que droga! Nunca dá para descansar em paz (Caminha, tropeça em Púchkin e leva um tombo). – Parece que tropecei em Púchkin!
Púchkin (erguendo-se): Nunca um minuto de sossego! (Caminha, tropeça em Gógol e leva um tombo). – Diabo! Parece que tropecei de novo em Gógol!
Gógol (erguendo-se): Sempre algum transtorno! (Caminha, tropeça em Púchkin e leva um tombo). – Droga! Púchkin outra vez!
Púchkin (erguendo-se): Isso é coisa de desordeiros! Uma completa desordem! (Caminha, tropeça em Gógol e leva um tombo). – Diabo! De novo Gógol!
Gógol (erguendo-se): Isto é um tremendo deboche! (Caminha, tropeça em Púchkin e leva um tombo). – Púchkin outra vez!
Púchkin (erguendo-se): Diabo, com todos os diabos! (Caminha, tropeça em Gógol e leva um tombo). – Gógol!
Gógol (erguendo-se): Droga! (Caminha, tropeça em Púchkin e leva um tombo). – Púchkin!
Púchkin (erguendo-se): Diabo! (Caminha, tropeça em Gógol e leva um tombo). – Gógol!
Gógol (erguendo-se): Droga! (Sai pela coxia).
Escuta-se a voz de Gógol atrás do palco: “Púchkin!”.
Pano
20 de fevereiro de 1934