Marisa Orth e a comédia
Na edição de ontem, entrevistei Marisa Orth e Miguel Falabella sobre seu reencontro no teatro, 23 anos depois de “Algemas do Ódio”, comédia popular que vi e abominei. Era o oposto de “Fica Comigo esta Noite”, de Flavio de Souza, tragicomédia em que ela havia estreado.
Desta vez, a partir da próxima sexta-feira no teatro Procópio Ferreira, em São Paulo, trata-se de uma comédia também popular _uma farsa_ mas Joe Orton e “O que o Mordomo Viu” são muito superiores à sátira dos bastidores de uma telenovela que a atriz aceitou fazer em 1991.
Nos trechos transcritos abaixo, Marisa detalha um pouco mais a sua trajetória na comédia, começando pelo momento em que se descobriu engraçada:
Eu descobri o humor… Na verdade, eu reneguei o humor.
Antes de entrar na EAD [Escola de Arte Dramática], eu prestei e não entrei. Faltei um dia na terceira fase, mudaram de data e não me avisaram, enfim, trauma. Fui fazer Vento Forte, com Ilo Krugli. Cheguei lá e, com 18 anos, era a pessoa mais insuportável do planeta. Hoje estou voltando a ser. [risos] Esse é o grande ciclo da vida. Nossa, se voltar a ser metade da chata que fui aos 18, ninguém merece. [risos] Mas lá estou eu no Vento Forte, que tinha [como temas no currículo] dois meses água, dois meses terra, dois meses fogo, dois meses ar. Era legal porque, em volta desses temas, tinha oficina de bonecos com Osvaldo Gabrieli, tinha dança com a Graziela Rodrigues. Mas eu já achava aquilo um absurdo. “Por que terra, água, ar e fogo?! Por quê?! Por que não asfalto e neon?!” Uma palhaça, pentelha. Mas foi muito legal, porque tinha exercícios constantes de criatividade e o tempo todo era “não explica, não explica”. Eu penei ali, foi bem difícil e bem bonito. Compus coisas legais, com um jeito de buscar personagens com música. Mas eu criticando, forte. Aí a gente tinha o trabalho de final de ano, que o nosso grupo fez em cima de uma poesia do Carlos Drummond de Andrade, um trabalho teórico de um gigantismo, pastas. E o Ilo Krugli, depois, “Muito, muito bom, agora falta criar alguma coisa”. Aquilo acabou comigo, odiei ele, [risos] achei que estava de palhaçada comigo. Tinha feito um trabalho acadêmico superlegal, com referências, com desenhos, mas era tudo… Não era uma criação. Eu não tinha essa consciência. E ele fez um pouquinho de deboche, “Que ótimo, agora falta criar alguma coisa, né?”, e foi para outro grupo ver. Eu queria morrer, “Agora chega, chega”. Saí do grupo e falei, “Vou eu mesma, com a cara e a coragem”, tipo revolta, protesto. Fui [para a apresentação final] e na hora pensei alguma coisa com caixa de fósforo, que eu era como palito de fósforo, que incomodava. Comecei a brincar com metalinguagem, não tinha texto, dizendo que ia encher o saco, que todo mundo talvez até quisesse que fosse embora, mas eu não gostaria de ir, porque estava precisando deles. Comecei um jogo de neurose com a plateia, e as pessoas começaram a rir. Morrer de rir. Quando saí, ele falou, “Parabéns, você tem muito jeito para comédia“. E eu falei, “Agora chega, agora acabou! [risos] Isso prova o quanto você não entende de teatro!”. E fui-me embora, puta da vida porque tinha passado um tempo inútil falando de água, fogo, ar e terra, e ainda por cima ele tinha dito que eu era boa de comédia!
Entrei na EAD e busquei sempre os dramas. Essa aceitação da comédia demorou muito para acontecer. O Miguel tem muito a ver com isso. Mas mesmo na EAD, durante os exercícios de voz, a gente fazia umas improvisações deliciosas. Eu, o Cássio Scapin, que era da minha turma. Era de chorar de rir. Talvez as improvisações de humor que a gente fazia fossem de melhor qualidade do que os esboços de drama, naquela época, que deviam ser francamente lamentáveis. Eu gosto de uma definição que a Bibi Ferreira falou, vou muito com ela. A Bibi falou que eu não sou dramática: sou cômica e trágica. Gosto disso. Porque vejo algumas novelas e, com todo o respeito, tenho medo de me chamarem. Não consigo muito o drama familiar. Algumas novelas muito familiares, sabe, drama do cotidiano, “passa a manteiga”, eu não… Uma vez a Cláudia Jimenez contou uma coisa interessante que disseram para ela na Globo, e a gente brincava muito com isso. Um diretor disse, “Cláudia, teu problema é que tu não imprime realidade”. [risos] Dizer isso para uma atriz, “Você não imprime realidade”, é uma maravilha, não? Tenho medo de, em alguns dramas, não imprimir realidade. Porque a minha cara mexe excessivamente, tenho músculo demais. Lembro que passei muitos anos tentando fazer teste para comercial, começo de carreira. Naquele tempo se pagava legalzinho o teste, dava até para viver só de teste, tinha uma mafiazinha, uns atores indicavam os outros, a gente vivia em teste. Nunca passei em nenhum, nunca. Porque era, “Tudo bem, Marisa, legal, agora faz natural”. [risos] “Não, não dá a sua opinião sobre o produto, não.” [risos] “Não, não, menos teatral, Marisa, por favor.” [risos] Eu não conseguia. Desisti de fazer teste. Isso é o que quero dizer com não ser dramática. Eu não consigo.
Mas gosto de tragédia, gosto de climão. Comédia também acabei gostando bastante. “Fica Comigo esta Noite” era tragicomédia, que é meu gênero preferido, continua sendo. Acho que é da minha geração. Eu amo essa peça, acho uma obra-prima do Flávio [de Souza]. Fiz na casa dos 20, fiz na casa dos 40 e quero fazer na casa dos 60. É uma peça que vou fazer três vezes. Acho um clássico. Ela é muito boa para atriz. Primeiro porque é uma atriz e um ator. O ator está morto e vai acordar. A atriz está no velório lotado e metade da peça é ela contracenando com invisíveis, mas que estão lá. Depois ela manda todo mundo embora e fica de fato sozinha. Mas então tem a baixinha, o padre, a irmã, a caderneta de telefone do tio Fernando. Você vai montando o espaço e falando com as pessoas e, pelas respostas delas, vai intuindo as perguntas e tudo vai ficando insuportável, dá realmente a sensação de claustrofobia. É uma delícia. Flávio está morando em Curitiba. E feliz. Escrevendo para um monte de coisa. Depois encontrei com o Miguel [Falabella] em “Algemas do Ódio”. Não, a culpa [por fazer comédia] não acabou até hoje, mas hoje gosto muito. E percebi, meu, que sou boa de comédia mesmo, sou engraçada, tenho tempo de comédia. É legal. Mas eu renegava. Estava acabando de sair da novela “Rainha da Sucata”, como Nicinha, que foi o que me consagrou como comediante. O Silvio de Abreu viu “Fica Comigo esta Noite” e, ali, tinha uma coisa superestranha: metade da plateia chorava e metade ria. Ele foi da metade que riu. “Puta comediante que você é, vou te dar um papel de comédia na novela das nove.” E aí começou.
Na verdade, acho que tudo começou quando nasci, porque acho a minha cara engraçada. Vamos falar a verdade. [risos] O jeito que contrai, o jeito que tudo… Mas aí tem uma frase que o Miguel falou, em “Algemas do Ódio’. Um dia enchi o saco no ensaio e ele falou, “Vem cá, você quer que eu instale uma canaleta para nevar quando você entra em cena, para você poder se sentir num filme do Bergman?”. [risos] Aí fiquei um pouquinho chateada. [risos] Era o making of de uma novela de época, uma supercomédia. Meu papel nem era tão engraçado, era aquele esteio da peça. Eu era mulher do Zé Wilker, imagina, tão moleca? Mas foi muito bacana, foi um grande sucesso. Estávamos em cena Wilker, Miguel, eu, Mônica Torres e Luiz Salem. Daí eu saí para fazer “Seis Personagens à Procura de um Autor”, com Paulo Autran. Eu dizia, “Não, gente, eu preciso”. Daí fiz. Foi legal. Aprendi outras coisas. Aprendi que o Paulo era um ator… Eu julgava, “Meu Deus, é agora, Paulo Autran, o seríssimo”. Em cena, o Paulo era muito mais indisciplinado do que o Miguel. Ele ficava fazendo careta, botando a língua para fora. Em “Algemas do Ódio”, o papel do Miguel era o estrondo maior. Era o protagonista da comédia. Seu papel era o de um ator como seria hoje um ex-BBB ou um levantador de peso, que tinha ficado famoso num comercial de cuecas e pegou uma novela de época, para fazer Sinhozinho sei-lá-o-quê. [risos] Era de matar. Ele não sabia o texto, escrevia na mão, aí queria fazer um aneurisma [levanta as mãos ao rosto], “ah! ah!”, para poder ler o texto. Você não sabe aonde ele foi. [risos] Aí botaram uma bolha de sangue, porque na época tinha uma bolha numa novela da Globo, e ele tinha a bolha. E o Miguel adorava fazer péssimo ator tendo aneurisma, “ah!, ah!”. [risos] O Miguel é um autor no palco. Em turnê, a gente não podia ter nenhum acontecimento mais exótico. Eu entrava e ele, “Eu soube, escrava Iaiá me disse [risos], que hoje sucê cruzou o solar”. [risos] Ele tinha me visto no saguão, saindo com algum paquera, alguma coisa assim. “A escrava disse que sucê…” Eu reagia, “pfff” [rindo para dentro]. Neguinho é barra pesada, meu, ele colocava tudo em cena. E não adianta, quanto mais você reprime mais ele tenta constranger. Porque eu faço a sério, faço a CDF. Eu me agarro qual Ulisses ao mastro! [risos] Quanto mais ele avacalha, mas eu quero lembrar a cena, mais fico no papel. A gente tem isso, parece casal véio.
Em “Sai de Baixo”, ele se autoapelidou Caco. A cara de pau. Não era Miguel que escrevia os episódios, mas ele no início ajudou a formatar, com o Cecil Thiré, e botou para si mesmo o nominho de Caco. Para não ter desculpa, entendeu?! Nossa, tinha dias, cara… Aquela dona Caca, a mãe dele, era inteira no caco. “De Carmo do Rio Claro.” Tinha rubrica assim, “Entra dona Caca e fala sobre doces”. [risos] E eu em pânico, “Mas quando é que vou saber? Você não me dá a deixa”. Ele fazia assim [levanta o queixo], “hm, hm, hm”. [risos] Outra vez ele falou assim, “Quando eu levantar o braço você vai”. O Miguel me ajudou muito a suingar. A jogar fora. Isso é o grande aprendizado. Porque eu sou paulista, sou engraçada, ok, mas suingar é carioca. É cearense. Não sei por quê, mas eles têm o suíngue. Não é o carioca Zona Sul, não. É o subúrbio. Eles são engraçados demais. E é a coisa de jogar fora. Eu aprendi, acho que fiquei mais suingada, e o Miguel foi grande, porque ele me mostrava outras atrizes, que eu não compreendia, não havia aprendido a valorizar, mas ele mostrava o tempo de comédia. Grandes comediantes, de jargão, como Zé Trindade, antigos, que eu achava meio… Mas a Magda não era um personagem que desse para improvisar. Ela tinha piadas ensaiadas. E eu tenho esse prazer de intérprete. Fico tentando me imaginar como era na cabeça do autor, quando escreveu, tenho essa viagem. E gosto de fazer sério, porque daí fica engraçado. Minha mãe me ensinou a gostar de Buster Keaton, daquela coisa seríssima. É de chorar de rir, quando você vê alguém fazendo muita merda muito sério. Mesmo na vida real. Pessoa séria, pessoa convicta. Eu adoro isso. Gosto também de Lucille Ball, que é outra coisa, mas sou louca por ela. Eu via, criança, e falava, “gente, ela é engraçada mas ela é bonita”. Gosto da Marília Pêra loucamente, ela é uma musa superinspiradora para mim, super. Sou louca por ela. E acho que ela faz comédia magistralmente. Fernandão [Montenegro], também. E a minha geração toda, que oscila muito entre comédia e tragédia.
Agora comédia ficou chique! Comédia stand up eu acho fantástica. Já está se depurando, como deveria. Porque ela precisa de cérebro. Stand up é texto, texto, e isso é pouca gente mesmo que consegue. Você pode até escrever um stand up superlegal, agora muitos… Acho que o Chico [Anysio] era maravilhosamente grande no stand up. O Jô [Soares] era um grande do stand up. Sempre teve esses grandões, a gente só não sabia o nome. Mas sabe o que eu penso? Que é uma maneira de o heterossexual masculino chegar ao teatro. É a coisa de Dionísio e Penteu. De repente, é o passeio de Penteu nos campos de Dionísio. “De terno, tá!” Ele não senta, né, meu amor. [risos] É um homem que não senta. É uma coisa mais de meninos. Você vê que tem poucas meninas em stand up. Mesmo nos Estados Unidos, tem Tina Fey, algumas mais, mas é um humor… Parece aquele seu tio engraçado. Eu gosto de stand up, gosto da inteligência. Cada vez mais percebo que o humor é um prazer do cérebro. Porque atrás da palavra graça tem a palavra achar. Achar graça. Uma coisa muito demonstrativa não tem a menor graça, porque a pessoa não acha. É um prazer intelectual. Por isso que tem a coisa de jogar fora. A boa piada tem um “delayzinho”. Você escuta [pausa] e aí você ri. É o tempo da sinapse.
[Alerta de spoiler, a seguir, para o final da peça “O que o Mordomo Viu”:]
Que vergonha não conhecer Joe Orton, falha grave na minha biografia. O Miguel falava, “Marisa, é um Joe Orton”. E eu, “Quem é, Miguel?”. Agora estou enlouquecida por ele, não acredito que não conhecia. É pré-punk. As raízes todas do punk inglês estão ali. O inglês fala sério, não brinca em serviço. Ali eu senti a raiz da coisa inglesa. É punk, é a única palavra que me vem. É agressivo para caramba. E superinteligente. Falam barbaridades com muita tranquilidade. Muita tranquilidade. “Não, não sou ninfomaníaca, apenas busco o que nunca encontrei em você como amante, e não estou falando da sua ejaculação precoce…” E aí vai. Não vai botar o final [na reportagem]. O marido está na clínica psiquiátrica e quer comer a secretária, que tem que fazer um teste. Ele fala, “Querida, tira a roupinha ali atrás no biombo”. A mulher dele [Marisa] entra. Porque eu ia dormir no “clube das lésbicas”, mas a tesoureira declarou que está apaixonada por um macho e os sapatões quebraram tudo. Fui dormir no hotel central, lá sofri uma tentativa de estupro, perdi a roupa. Começa assim. E uísque desde as dez da manhã. E oferecendo droga, droga. Eu chego, vejo o vestido da secretária, visto… Eu muito antes havia sido estuprada durante um apagão. Não vi, fiquei grávida de gêmeos e entreguei esses filhos para adoção. E tenho um medalhão. “Deixe-me ver esse medalhão. Eu dei nas mãos de uma camareira de quem eu abusei.” E eu, “É você!”. São todos estupradores. E é numa clínica psiquiátrica. No fim, a secretária e o menino do hotel que tentou me estuprar são nossos filhos! [risos] E o menino passa tentando me comer a peça inteira e o meu marido tentando comer a filha o tempo inteiro. E no final é um grande amor, que dá em todo mundo, “Somos todos incestuosos, que coisa bonita”. E meu filho tirou fotos de mim no hotel e fica me chantageando. E aí tiros. [risos] E nós estreamos no Nordeste! [risos] Gostou da temática leve? [risos]