Os muitos teatros de Cacilda Becker, pelas mãos de Ruggero Jacobbi, Luciano Salce, Ziembinski
“Cacilda!!!!” são muitas peças. Também é muito longa, cinco horas e meia, contando meia hora de intervalo.
No calor do último domingo, com fogueira mantida acesa ritualmente dentro do teatro, sem ar condicionado ou ventilação, a apresentação foi extenuante. Também não ajuda ver uma personagem entrar em cena para dizer que está longa e ser chamada de censora e acabar expulsa.
(Vale sempre lembrar que as peças de Shakespeare, apesar de sobreviverem em edições longas, eram apresentadas em duas horas, no máximo duas horas e meia. A imposição de espetáculos de mais de cinco horas, que resultam em públicos menores e por vezes próximos de seguidores, é do diretor.)
De qualquer maneira, “Cacilda!!!!” são cinco peças, com algumas cenas antológicas, testemunhando uma riqueza teatral que não se imaginava possível na provinciana São Paulo dos anos 50.
O próprio Zé Celso e o co-diretor Marcelo Drummond protagonizam respectivamente as versões farsescas, bem mais engraçadas do que os originais indicam, de “Ronda dos Malandros” e “A Importância de Ser Prudente” _ou “Careta”, na nova versão.
Cacilda Becker atuou em ambas, na segunda no papel da tia interpretada por Drummond, em duas cenas da comédia de Oscar Wilde, que talvez nunca tenha sido tão “drag”, escrachado e hilariante. Nada de drama, não no Oficina, para celebrar Wilde.
Em “Ronda”, encena-se o momento mais questionável da história do Teatro Brasileiro de Comédia.
No relato de Alberto Guzik no livro “TBC: A Crônica de um Sonho”, “a ‘Ronda’ e [Ruggero] Jacobbi foram afastados por motivos ideológicos”. O diretor italiano “não procurara disfarçar seu interesse por um teatro popular e engajado, e com ‘Ronda’ afrontava os capitalistas conservadores que haviam bancado a produção”.
Zé, com figurino e peruca que carregam na comédia popular, interpreta um misto de Mr. Peachum, espécie de Pantaleão do original de John Gay, com Franco Zampari, o produtor do TBC que tirou a peça de cartaz.
O enviesamento ideológico do TBC fica ainda mais claro em “Paiol Velho”, outra peça revisitada em “Cacilda!!!!”. O texto de Abílio Pereira de Almeida pode ser visto até como alegoria das três forças envolvidas no próprio teatro _os industriais italianos, os quatrocentões e as classes populares que ecoavam em seus artistas contratados.
É peça com opção de classe definida e ajuda a compreender por que Abílio foi, segundo relatos, o único autor brasileiro do TBC. É difícil imaginar remontagem de algo tão preconceituoso, hoje. Mas ao mesmo tempo a encenação do Oficina revela que não faltava ali carpintaria, talento para construir diálogos e personagens.
Uma quarta peça evocada, “Entre Quatro Paredes”, de Sartre, resulta em cena de menor impacto, como aliás todo o primeiro ato, que poderia muito bem contribuir para a redução do espetáculo pela metade ou quase.
Mas uma última peça, “Anjo de Pedra”, no título original “Summer and Smoke”, de Tennessee Williams, dirigida então por Luciano Salce, apresenta o que é _de longe_ a melhor cena do espetáculo, aquela que confirma o inesgotável talento de Zé Celso como encenador e que torna “Cacilda!!!!”, como se diz, imperdível.
Camila Mota, que ao longo das peças “Cacilda” vem se aproximando cada vez mais de Cacilda Becker, tanto física como vocalmente, tem uma meia hora de esplendor em cena. Um trecho de sua fala sem travas, uma mistura da personagem Alma Winemiller, de Williams, e da personagem Cacilda, de Zé, entre outras tantas:
Fui acusada de falar exageradamente bem, por pessoas que acham desnecessária uma boa dicção. Sou de ascendência grega e quando ouço falar do que não se pode falar aaahhhh! canto tudo que tatuou meu sopro acento grego… sotaque gringo yankee-ibero-lusitano-Raul Roulien empolado Laura Suarez brasileiro passando de português: Bibi Ferreira voz colocada Maria José de Carvalho, “Que direi, que farei, que clamarei? Oh fortuna! Oh crueza! Oh mal tamanho! Morta me és tu. Morte houve que contra ti pudesse.” Para! Cacilda Inês é morta! Este vento que passa indiferente e manso fala do que não se pode falar… Turkov coça língua no céu da minha boca Ziembinski põe música sem prosa poesia só tu-do-tem-po-con-ta-do ma-te-má-ti-ca-mu-si-cal ver-bo-me-tri-fi-ca-da e silêncios pausas can-ta-das con-ta-das (Silêncio, tensão) po-lo-ne-sas… (longo silêncio metrificado quebrado por Ahs.) Ah! Celi, Salce, Ruggero… Phala es-pe-ran-to mu-sicado Mamãe professorinha de português Minhas irmãs meu Qorpo Santo aprendemos o que as brasileiras não fazem mais usar pronomes de novo e usamo “los” com muita naturalidade. Para que Amemos todos os Agás aspirados os Kás martelados os Dáblius… consoante… ba-tu-ca…
Tem muito mais em Alma e nas cinco horas e meia de “Cacilda!!!!”, inclusive algumas novidades, como o coro que talvez nunca tenha sido tão belo e coeso e intérpretes marcantes como Glauber Amaral e Carlota Joaquina.