São Paulo, por Roberto Piva e Marcelo Drummond

Nelson de Sá

Há duas décadas, quando Zé Celso se decidiu pela encenação de “Ham-let” para reabrir o Teatro Oficina, escalou Marcelo Drummond para uma tarefa muito bem definida.

Antes de Marcelo se tornar o príncipe Hamlet, Zé se tornou o rei Hamlet, o Fantasma. A cena de ambos foi a primeira a ser traduzida, um trecho todo vertido pelo diretor: não era só o personagem do ator Zé, mas uma alegoria do diretor, em sua visão para a montagem.

O que aquele Fantasma queria daquele príncipe era que fosse instrumento de sua vingança _do teatro, dos anos 60, das revoluções envenenadas pela ditadura e pelo capitalismo.

Era o Fantasma escancarando as portas do Teatro Oficina depois de duas décadas e clamando ao príncipe: aqui é Elsinore, ocupe. Marcelo virou do avesso a sua própria existência e realizou a vingança, foi um Hamlet inteligente e provocador, um Hamlet como jamais visto _e que talvez retorne, em algum momento, para reanimar a vingança.

Ficou nele o personagem: nesta geração, como diretor e ator, Marcelo é o melhor tradutor dos anos 60, é quem compreende não só Zé, mas outros titãs daquela era, como José Vicente e Roberto Piva. Na primeira peça que dirigiu, “O Assalto”, de Vicente, já mostrou como atingir o mais pessoal, o mais individual, e fundi-lo com o político, o social, a revolta.

Mas o instante em que sua compreensão de toda aquela geração é mais evidente recebeu por enquanto uma só apresentação, pelo que pude acompanhar, há dois meses: “Paranóia”, de Piva.

Vi algumas leituras anteriores, Marcelo está mergulhado há anos em “Paranóia”, conversou com Piva sobre o livro, mas foi no palco que sua visão se mostrou de fato. Foi com o poeta paradigmático da década de 60 e de São Paulo que o ator-diretor-produtor carioca expôs todo o repertório acumulado.

A apresentação foi na Praça das Artes, um anexo a meio quarteirão do Teatro Municipal; um bloco de concreto no centro de São Paulo.

Os poemas na boca de Marcelo não traziam qualquer traço de declamação. A praça da República, cada esquina ou banheiro; o perigo, o amor, a violência e a droga: tudo aquilo era como se fizesse parte dele. Não era algo externo, interpretado, mas um depoimento.

Na encenação, trata-se de um monólogo, mas a interação com o músico Zé Pi é constante, até para, expressamente, romper a solidão da cena. Outras intervenções cênicas são igualmente marcantes, unindo humano & tecnologia à maneira do ator-diretor Robert Lepage.

A maior está no jogo de iluminação com o figurino, um terno feito de material que retém a luz por algum tempo. Sem parar, ao longo da apresentação, um fio de luz risca o tecido, escreve nele. Como Roberto Piva, escrevendo nas paredes dos edifícios de São Paulo.

De Marcelo Drummond, sobre “Paranóia”:

Lembro a noite que cheguei, mais um que chegava de outra cidade pra tentar a vida em São Paulo, fazer teatro. Pra fazer teatro foi um parto já contado algumas vezes… mas vamos pras intimidades, lembro de falar muitas vezes com Piva ao telefone. Ele muito ligava todos os dias, ficava falando coisas lindas, talvez tenha sido ele a primeira pessoa com que falei (no caso ao telefone) e lembro de ele mandar ler “Paranóia”.

Sou de uma geração que cresceu nos piores anos, mas lembro ainda criança da Tropicália acontecendo. Mas muitos foram apagados pela grande mídia e realmente me eram desconhecidos, figuras de São Paulo, entre elas o próprio Zé Celso, que fui trepar por tesão e depois de trepar e saber que eu queria fazer teatro me chamou pra vir pra São Paulo e trabalhar no Oficina.

Aqui conheci muita gente, amei, amo e amarei muitos, trabalhei com um número impressionante de artistas em todas as épocas, fugi, me envolvi, briguei muito mas produzi muito e mesmo protagonizando grandes papéis nunca tive coragem de me colocar à frente da criação do rito/espetáculo, nem neste momento em que quis de presente aos que amo dar essa leitura.

Já não é mais uma simples leitura, mas continua sendo um ato de amor, onde vários amores encontramos e num curto espaço de tempo nos jogamos na poesia do Piva, como ela própria se joga pela cidade, tentando declarar nosso amor ao Teatro Oficina, a São Paulo a cidade que escolhi pra viver e criar.