De Robben Island, na África do Sul, para Jenin, na Cisjordânia
Uma cena como não se vê mais no Brasil, ligando tão diretamente o teatro com a política. O diretor Gary English surgiu na boca de cena e dedicou a apresentação da peça “The Island” a Nelson Mandela, enfatizando que o líder sul-africano afirmou que o apartheid vai sobreviver enquanto não houver uma Palestina livre, “free Palestine”.
Foi no Centro Universitário Maria Antonia, a dois quarteirões da esquina em que a Tropa de Choque atacou os manifestantes em junho passado _e a poucos metros da Batalha da Maria Antonia, quando estudantes da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo foram atacados por estudantes da Universidade Mackenzie, levando à morte de José Carlos Guimarães, em 1968.
“The Island”, a ilha, tem como cenário uma cela de Robben Island, a prisão em que Mandela passou quase 19 anos, tão lembrada nos últimos dias. Não me recordo de ver ou ler, naqueles que falaram agora da aceitação do capitalismo por Mandela ou de seus elogios à Revolução Cubana, qualquer registro sobre a Palestina. Não se fala de Palestina.
Na terceira e última apresentação da peça, ontem à noite, eu me vi diante de dois extraordinários atores da companhia teatral de Jenin, acampamento de refugiados palestinos na Cisjordânia: Ahmed Rokh e Faisal Abu Heijel.
A encenação transporta para lá, como alertou o diretor americano em sua introdução, a peça sobre Robben Island, com seus dois presos políticos enfrentando a solidão, a falta de futuro, os maus-tratos. Como se a ilha-prisão situada perto da Cidade do Cabo fosse a Cisjordânia ocupada ou a Faixa de Gaza.
No enredo, os dois presos ensaiam “Antígona”, a tragédia de Sófocles sobre desobediência civil. Um deles recebe a informação de que sairá livre em três meses, e uma crise se instala entre ambos. Um com perspectiva de retorno à vida, o outro, nenhuma. Na peça-dentro-da-peça, que encerra “The Island”, o que vai ficar na ilha faz Antígona, que resiste à lei, e o que vai sair em liberdade faz Creonte, que a condena.
Mas é o companheirismo de ambos, dos atores Ahmed e Faisal assim como dos personagens John e Winston, o que mais emociona. Expressam companheirismo e fidelidade, mas também almas abertas, desarmadas.
Os dois amigos podem ser vistos alegoricamente como Mandela e o atual presidente sul-africano, Jacob Zuma, que encerrou seus 10 anos em Robben Island em1973, pouco antes de “The Island” estrear na Cidade do Cabo, disfarçada para enganar a censura. Podem também ser vistos como a Palestina e a África do Sul, hoje, esta já livre.
“The Island” é parte da 1ª Bienal Internacional de Teatro da Universidade de São Paulo. A atriz Maria Tendlau é uma das curadoras e falou no final da apresentação sobre a última semana de peças deste que é o mais politizado festival teatral em São Paulo em anos.
Também o mais provocativo, com peças sobre a Síria, “66 Minutos em Damasco“, e a Argentina, “Mi Vida Después“, de igual ou maior impacto. Ainda nesta semana, terá um “Macbeth” da Tunísia, berço da Primavera Árabe. [É um contraste grande, no momento em que se anuncia em São Paulo um festival internacional de teatro com encenações não só já vistas no país, mas opção estético-política bastante desgastada.]
Sintomaticamente, não foi grande a atenção para “The Island” ou a Bienal. Vale recordar porém o que falou há pouco Leilah Assumpção, sobre a responsabilidade do teatro: ele impacta como ondas, pelos corpos, como uma pedra que é jogada num lago.
Vale registrar também que, quando em Robben Island, Mandela marcou a seguinte passagem de “Júlio César”, de Shakespeare:
Cowards die many times before their deaths:
The valiant never taste of death but once.
Of all the wonders that I yet have heard,
It seems to me most strange that men should fear,
Seeing that death, a necessary end,
Will come when it will come.
Uma pequena observação apenas com o intuito de auxiliar. Mandela não passou 27 anos em Robben Island. Em abril de 1982 ele foi transferido para a prisão de Pollsmoor em Tokai, Cidade do Cabo, sendo posteriormente enviado a prisão Victor Verster em 1988. E foi desta última que ele foi libertado, em 11 de fevereiro de 1990.
obrigado, Lourival. Corrigi para “quase 19”. abs