Sobrevento dá um passo para fora do teatro de animação, mas mantém o primor

Nelson de Sá

Tem 20 anos que vi a minha primeira peça do Sobrevento. Era ainda uma companhia carioca de bonecos, em passagem por São Paulo, com a encenação de algumas peças curtas de Beckett. Já impressionava pela atenção ao detalhe, pelo primor _e pela capacidade de abordar singelamente as questões mais complexas.

Não foi diferente agora, com “São Manuel Bueno, Mártir“, adaptação de uma novela de Unamuno. Nela, os manipuladores Luiz André Cherubini, Sandra Vargas e Maurício Santana são também ou principalmente atores, com os bonecos restritos a um cenário central, um tabuleiro alegórico que se contrapõe à mise-en-scène.

Antes, no entanto, o registro de que se trata hoje de um grupo da Zona Leste paulistana, mais até, de um teatro no coração do bairro boliviano, entre o Brás e o Belém, que visitei no final da tarde de sábado, cruzando a movimentada feira de rua, um labirinto cultural que prepara o espírito para a encenação do Sobrevento.

Sobre o espetáculo, o programa relaciona a descoberta que o grupo fez de São Manuel (“mártir e santo por não acreditar em Deus, padroeiro dos que duvidam”) com um movimento feito pelo próprio grupo (“um passo para fora dos limites do teatro de bonecos [seguindo] a trilha incerta, o caminho difícil e tortuoso, da dúvida”).

Foi um passo importante na trajetória do Sobrevento, que não queria mais demonstração de virtuosismo com bonecos, não queria limites. E alcançou o intento, não só nas atuações seguras dos três agora atores, mas na encenação de André Luiz, com destaque para a música em cena, que torna “São Manuel” quase um musical.

A atenção ao detalhe, a perfeição, prossegue em tudo, com o ar reverente e quase litúrgico que caracteriza o Sobrevento, ao menos nos espetáculos que vi.

Devo admitir, porém, que o tema da “mentira vital” de Unamuno (a fé, que Manuel não tem, mas considera essencial) não me interessou particularmente. Anos atrás, já tinha ouvido de Ariano Suassuna, em entrevista, que ele havia se tornado católico seguindo os preceitos heterodoxos de Unamuno, autor tão “armorial”.

Não consigo mais me importar com toda a angústia religiosa, sobre a fé etc. “Orlando Furioso“, também do Sobrevento, até resvalava pela fé, mas seu foco era o amor terreno, real, ou pelo foi assim que vi a peça _com os belíssimos bonecos “pupi”. Dos dois temas, me importa mais o amor, não o sobrenatural, os fantasmas.

Mas o Sobrevento está em movimento, em transformação. Hoje à noite mostra cenas da nova peça, que estreia dia 15. “São Manuel” vai só até domingo 10.