Da “Aurora da Minha Vida” à “Operação Trem-Bala”, nostalgia de Naum
A trajetória de Naum Alves de Souza ao escrever “Operação Trem-Bala”, misturando um conto seu a uma narrativa que pouco ou nada tinha a ver com o original, remete à escritura semelhante _e fascinante_ de um dos textos que marcam o teatro contemporâneo, “Blasted”.
Sarah Kane começou compondo personagens próximos, que remetiam a ela mesma e seu pai, mas no meio, chocada com o genocídio que acontecia então na Bósnia, fez entrar um soldado, que destrói aquela cena psicológica com uma explosão, derrubando a parede do quarto de hotel.
Coloca abaixo toda aquela existência, dos personagens e da peça. Do nada, corta da violência individual para a social.
Naum, pelo que se vê em cena, faz o caminho oposto. O que promete inicialmente ser uma comédia política sobre o projeto de uma linha de trem-bala, quase uma notícia de jornal envolvendo gastos públicos exagerados e os desvarios de um político senil, se revela uma peça sobre o indivíduo.
Não conheço detalhes da maneira como o dramaturgo o escreveu, ele que estava internado na virada do ano, mas é como se o texto se visse, de uma hora para outra, tisnado pela vida sob risco.
Um dos maiores autores das últimas décadas no teatro brasileiro, inexplicavelmente em menor plano nas datações históricas recentes, Naum dá nova prova do quanto é capaz de expressar a nostalgia familiar, a amargura; do quanto é capaz de ser honesto com a própria existência.
Dramaturgos jovens como Leonardo Moreira ou Jô Bilac poderiam aprender um bocado com a liberdade que Naum se permite nesta peça.
E não é só no texto. O autor-diretor-cenógrafo, que na montagem histórica de “Macunaíma” foi diretor de arte, criando uma nova representação do Brasil com pouquíssimos elementos, reencontrou agora a alegoria exata: põe no palco o que há de mais frágil e nostálgico, um trenzinho elétrico.
O trem em cena, descobre-se aos poucos, tem menos a ver com o trem-bala da suposta comédia política ou com o trem do golpe dos filhos para levar o pai ao asilo _e mais com a própria vida. Que passa rápido.
É o que existe em cena, além dos personagens fantásticos, em cadeiras de rodas e figurinos improváveis. Marco Antônio Pâmio, egresso do “Macunaíma” de três décadas atrás, está firme em seu humor sarcástico, assim como dois outros atores de ótimas cenas cômicas, Mila Ribeiro e Fábio Esposito.
Mas é Ana Andreatta que parece mais incorporar aquilo que Naum tem a expressar. É quem mais faz rir da tragédia, que consegue o equilíbrio entre farsa e drama, patética.
“Operação Trem-Bala”, ainda que sem a produção que acompanhou o autor-diretor-cenógrafo em outros tempos, como na trilogia em torno de “Aurora da Minha Vida”, seu texto fundamental, consegue marcar bem os 70 anos de vida e 40 de carreira do grande artista.
Além dos atores, outros criadores se unem para erguer o espetáculo e saudar Naum, como Lívio Tragtenberg (trilha), Fábio Namatame (visagismo), Wagner Freire (iluminação). E soa inconcebível que tenha saído de cartaz depois de tão pouco tempo. Na assessoria, dizem que ainda pode voltar, no ano que vem, depois do Natal.