Ostermeier e o colapso iminente da cultura capitalista

Nelson de Sá

Thomas Ostermeier e “O Inimigo do Povo” se tornaram uma febre no fim de semana, em São Paulo. Fui ver o espetáculo de sábado.

As primeiras cenas são de muito efeito, com as canções pop que acompanham o diretor alemão desde “Shopping & Fucking”, com microfones no palco, guitarra. E agora com “Guns of Brixton”, do Clash, também com David Bowie e “Change”.

Anunciam-se a mudança, as armas. Mas logo o diálogo realista se impõe, com uma discussão ético-científica sem fim _e Ostermeyer não parece convencido, na verdade. Não parece saber ou querer tirar de Ibsen maior ritmo, construir uma mise-en-scène que prenda a atenção.

Depois da barriga de uma hora, talvez mais, o que salva é o discurso de Stockman. Mas não exatamente do dr. Stockman de Ibsen e sim da obra de um grupo anônimo anticapitalista francês que Ostermeyer diz espelhar o que ele pensa do mundo, hoje.

Grupo que, este sim, ergue as armas de Brixton, anuncia a mudança.

O livro se chama, nas versões que achei on-line, em inglês, “The Coming Insurrection”, escrita por uma Comissão Invisível, anônima, depois dos primeiros sinais da crise financeira muncial _e da crise social na Europa_ seis anos atrás.

Prevê nada menos que o colapso iminente da cultura capitalista. Um trecho, da versão projetada no palco do Sesc Pinheiros:

I AM WHAT I AM. O slogan de um fabricante de tênis americano não é uma simples mentira, uma simples campanha publicitária, mas uma campanha militar, um grito de guerra, que se dirige contra tudo que existe entre as essências, contra tudo o que circula indeterminado, contra tudo o que atesta que nós existimos e que a vida não se parece em todo lugar com uma autoestrada, com um parque de diversões ou com um quarteirão recém-construído: Espaços friamente vazios, entediantes, sem paixão, perfeitamente organizados, nos quais somente os corpos registrados, moléculas automóveis e produtos ideias circulam.

Outro trecho do discurso de Stockman, retirado do livro francês, mas ecoando “4.48 Psicose”, que Ostermeier também montou:

Nós não estamos deprimidos: fazemos greve. Quem se recusa a se dominar, para quem a “depressão” não é um estado, mas uma saída, uma despedida, um passo na direção da independência política. Desse momento em diante não há mais soluções além daquelas oferecidas pela medicina e pela polícia. Deste modo, a sociedade não teme dar Ritalina à força a suas crianças ativas sem qualquer hesitação diante da dependência dos medicamentos e da presunção de que suas crianças de três anos têm “distúrbios comportamentais”. Porque a hipótese de seus falsos Eus cai por terra.

O que Ostermeier proclama na encenação nada tem a ver com Ibsen ou o realismo _e muito com Mark Ravenhil (“S&F”) e Sarah Kane (“4.48”), autores ingleses de sua geração. Daí a sensação de que a peça não dá liga, nada justifica cachorro em cena ou o cotidiano de um casal.

Mas pouco importa, na verdade. O discurso da insurreição dá desculpa para uma catarse verborrágica, para todo lado, no público _e bem maior aqui do que na Grécia ou na Itália, que também viram a peça, pelo que Ostermeier descreveu ontem em conversa no Instituto Goethe.

Da minha parte, além de Clash e Bowie, foi o que me prendeu. O resto, Ibsen inteiro, poderia ter caído nos ensaios. [Outras pessoas, se compreendi bem as reações, prefeririam que Clash, Bowie, Ravenhil, Kane e a Comissão Invisível tivessem sido cortados.]

Comentários

  1. Permita-me discorda togrande obra de totalmente do seu texto. Esta foi uma das peças mais pungentes que já vi nas últimas décadas, comparada a Eletra Com Creta, de Gerald Thomas, Paraíso Zona Norte, de Antunes Filho, Opus Profundum, de Dionisio Neto e Ham-let, de Zé Celso. Uma grande obra!

Comments are closed.